“Minha perna não aguentou ser feliz.” A perna em questão era de Nizan Guanaes, e a frase veio em um depoimento em rede social. Com uma lesão na cabeça do fêmur, Nizan vai ter que abandonar a corrida, uma das coisas que mais adora fazer. Vendo o desabafo dele, pensei em um momento semelhante que eu mesma enfrentei, muitos anos atrás. No meu caso, foi um problema na cervical. Meu pescoço resolveu travar quando eu estava a todo vapor. Tinha mudado de vida, começando pelo corpo, e então me via de certa forma traída por ele. Senti a dor e a frustração de me ver tolhida no que apreciava fazer.
Mas, espera aí, disse a mim mesma: eu sou o meu pescoço? E decidi que não. Acima daquela estrutura que falhava, minha cabeça estava cheia de planos. Se eu não podia mais fazer os mesmos exercícios, encontraria outros. Olhar para o lado às vezes doía, e olhar para trás era impossível. Bela metáfora. Sempre preferi olhar para a frente — é lá que estão os novos caminhos.
Entendo a decepção expressada no vídeo de Nizan. Mas, como ele próprio disse, se a perna não tinha aguentado ser feliz, ele aguentaria. Há outras coisas que ele pode buscar. Nem duvido que, a esta altura, ele já tenha estabelecido e esteja cumprindo outras metas para manter o físico em dia.
“Acima daquela estrutura que falhava, minha cabeça estava cheia de planos”
Junto do limite não precisa vir a limitação — se abrirmos espaço para a superação. Com isso não quero dizer que não haja barreiras reais. Quando nosso corpo dá sinais de desgaste, é melhor ouvi-lo, senão só vamos piorar o problema. E assim é com tantos outros alertas que nos chegam. Há certamente questões mais dramáticas do que trocar uma atividade diária, por mais amada que ela seja, por outra. Penso no caso do maestro João Carlos Martins, que desde muito jovem lida com a distonia focal, mal que acomete muitos músicos. Ao longo de toda a sua carreira de sucesso, foi encontrando maneiras de driblar o problema. Mais do que isso: ele se reinventou como maestro e como pianista extraordinário . E o piano não era apenas algo de que ele gostasse — era sua vida.
Poderia continuar listando exemplos impressionantes. Eles não faltam. Mas com certeza todo mundo consegue se lembrar de alguma história, pessoal ou pública, que ilustre a importância de se superar. Não me canso de frisar a importância de cuidar da mente. Volta e meia retomo essa minha convicção neste espaço. Mas o faço porque, de fato, é nela que muitas vezes os limites são promovidos a limitações.
Diante da angústia que toma conta quando nos vemos privados de algo importante em nossa rotina, vivemos uma espécie de luto. Negação, tristeza e revolta se sucedem. Mas é preciso parar e pensar: se não posso ter felicidade nisso, onde posso encontrá-la?
Muitos a procuram em uma atividade em que tenham segurança, um desafio que, naquele momento de dificuldade, se sintam capazes de vencer. É uma maneira de se ver no controle. Outros ainda preferem um hobby que alimente sua sensibilidade e libere a mente para buscar outros caminhos e soluções que, de início, não ficam aparentes.
Na próxima vez que você se vir limitado, pergunte-se: se eu não sou o meu pescoço, ou a minha perna, ou minhas mãos, como posso me reconectar com o que eu sou de verdade? Tenho certeza de que a resposta já está aí dentro de você.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860