
Quem entra no Vaticano não tem como não se impressionar. Seja na arte de seus museus ou nas dimensões monumentais da Basílica de São Pedro, cada detalhe sublinha o alcance da Igreja Católica. No comando de tudo, como líder religioso e chefe de Estado, o papa. Em muitas ocasiões, a opulência desses espaços se refletiu no que era servido à mesa. Não foi o caso, porém, durante o pontificado de Francisco.
No passado, houve papas que comiam com talheres de ouro maciço, outros que serviam refeições com dezenas de pratos e até um que aparentemente morreu de indigestão, lá no século XIV. Nada disso passava perto dos ideais de Francisco, que transpôs para os hábitos alimentares a marca de seu papado: a simplicidade. Não que ele não gostasse de comer. O primeiro latino-americano a ocupar o trono de Pedro honrava suas raízes. Assim como João Paulo II gostava dos pierogi de sua Polônia natal e Bento XVI apreciava as salsichas brancas alemãs, Francisco cultivava os gostos da Argentina, onde nasceu, em uma família de origem italiana, como Jorge Mario Bergoglio.
A culinária de sua infância humilde em Buenos Aires mesclava o molho de tomate das nonnas com o doce de leite portenho. Em sua casa, dizia-se que “com comida não se brinca”. Aprendeu desde aí a se opor ao desperdício: se um pão caísse no chão, as crianças não deviam jogá-lo no lixo, mas recolhê-lo e beijá-lo. Entre seus gostos pessoais, estavam os risotos e os pratos do Piemonte, região do norte da Itália onde tinha seus antepassados, além das empanadas e das carnes tão queridas dos argentinos. Tampouco dispensava o mate. Fazendo jus ao nome que escolheu, o do mais modesto dos santos, preferia comer tranquilamente uma pizza — outro de seus pratos favoritos — a degustar pratos requintados.
“Gostava de doces, mas em seu discurso o açúcar vinha com advertências”
Também na forma como se referia à comida, Francisco buscava expressar uma religiosidade de gestos cotidianos, inclusive na linguagem utilizada em suas pregações. Ao falar de espiritualidade, o pão, o sal, o azeite, o fermento tornavam-se metáforas. Em audiências, comparou a vida cristã a uma massa de pizza e a Igreja a uma mesa com lugar para todos.
Gostava de doces, mas em seu discurso o açúcar vinha com advertências. Em uma fala, recordou os leves biscoitos de sua avó, que se inflavam ao serem fritos, mas que eram como a mentira: grandes e ocos. A fé, disse certa vez, não era como um glacê, decorativo e reservado a algumas ocasiões; devia ser empregada todos os dias. E aconselhava cuidado com quem adoça muito as relações: por trás do açúcar, algo amargo pode estar escondido.
Também recomendava que se preferisse a refeição completa a lanches fora de hora, que se evitassem as realidades espirituais pouco profundas que não alimentam os bons valores cristãos. Gostava de encerrar a comunhão dominical desejando “bom almoço”. Não só porque, saciado o espírito, fosse a hora de matar a fome do corpo, mas para lembrar aqueles que não tinham o que comer. Pensando nestes, instituiu o Dia Mundial dos Pobres, data em que dividia uma refeição com pessoas em situação de rua e vulneráveis. Com Francisco, o Vaticano aprendeu que os banquetes podem ser silenciosos, sem luxos, mas repletos de presença. Ele nos lembrou, todos os dias, que comida é partilha, e não privilégio.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942