A pandemia impôs mudanças radicais à rotina das crianças. Com o confinamento, atividades tradicionalmente presenciais e analógicas, como estudar, brincar e socializar, passaram a ser intermediadas por computadores, celulares e tablets. Além disso, o fechamento das escolas e creches fez com que muitos pais, sobrecarregados, flexibilizassem a quantidade de tempo que seus filhos podem passar em frente às telas. Estudos recentes mostram que, após quase um ano e meio de quarentena, essa flexibilização — ainda que inevitável — multiplicou a probabilidade de as crianças desenvolverem miopia.
Um artigo publicado em julho no British Journal of Ophtalmology, elaborado a partir de um estudo com quase 1.800 crianças em Hong Kong, mostrou que a incidência de miopia nesse grupo mais que duplicou durante a pandemia, passando de 11,6% a 29,6%.
Outro trabalho, publicado em janeiro no Journal of the American Medical Association, obteve conclusões semelhantes. Ao analisar os dados de 120 mil crianças na China, os autores constataram que, em comparação aos cinco anos anteriores, a probabilidade de elas desenvolverem miopia chegou a triplicar em 2020.
A situação no Brasil não é diferente. Segundo o Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), 72% dos médicos que tratam da visão relataram ter diagnosticado o problema com maior frequência, ao longo do último ano, na faixa etária até 19 anos.
A miopia é o transtorno ocular mais comum do mundo. Ela ocorre quando, devido a um alongamento da córnea ou do globo ocular, a luz é focalizada à frente da retina — o que faz com que os objetos distantes pareçam desfocados. Com frequência, esse alongamento está ligado a uma propensão genética, mas ele também pode ser agravado a partir do uso de telas e de outras atividades que forcem o campo visual imediato.
Não à toa, mesmo antes da pandemia, a incidência de miopia já vinha aumentando em um nível preocupante, devido ao contato prolongado e cada vez mais precoce com computadores e smartphones. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os míopes passaram de 23% da população mundial, em 2000, a 33%, em 2020. Se a tendência continuar, em 2050 eles serão metade do planeta.
Outra consequência do tempo excessivo de tela é a proporção cada vez maior de casos de miopia grave, que comprometem seriamente a visão. Nos últimos 20 anos, eles praticamente dobraram: em 2000, afetavam 2,2% da população; em 2020, afetavam 4%; e, em 2050, podem chegar a afetar 10%.
A miopia, na maior parte das vezes, não acarreta por si só problemas sérios de saúde, mas o alongamento do globo ocular — que a causou — pode aumentar a vulnerabilidade do paciente a transtornos mais graves, como descolamento de retina, catarata e glaucoma. Além disso, também de acordo com a OMS, a miopia não tratada é a principal causa da deficiência visual leve e moderada, e a segunda maior causa da cegueira.
Infelizmente, no contexto da pandemia, os pais têm pouquíssima margem de manobra para regular o tempo de tela dos filhos. Ainda que alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, tenham retomado as aulas presenciais, o ensino remoto segue uma realidade em boa parte do país — e na prática, enquanto houver ensino remoto, haverá maior risco de desenvolvimento da miopia.
Mas há formas de reduzir os danos: diversos estudos apontam que passar tempo ao ar livre pode reduzir a probabilidade e a gravidade da miopia nas crianças em idade escolar. Uma pesquisa de 2018, publicada na revista Ophtalmology, constatou que a progressão da miopia reduziu em 53% nas crianças que passavam ao menos 11 horas por semana em ambientes externos. Outra, publicada em 2015 no Journal of the American Medical Association, concluiu que 40 minutos diários ao ar livre diminuíam a incidência de miopia em 23%.
Isso ocorre porque a luz do sol estimula a produção de neurotransmissores que desaceleram o aumento do olho. Uma pesquisa da Universidade de Freiburg, na Alemanha, mostrou que a chance de desenvolver miopia é cinco vezes maior nas pessoas com pouca exposição diária ao sol, e até 16 vezes se, somado a isso, elas executarem alguma atividade que exige muita proximidade dos olhos.
Outra ação importante por parte dos pais é levar o filho ao oftalmologista desde cedo e com regularidade — não só quando ele se queixar da vista embaçada ou das dores de cabeça causadas pelo esforço visual. Os anos da infância são cruciais para prevenir e diagnosticar transtornos nos olhos, e o momento atual pede atenção a essa possibilidade.