Os episódios de violência e depredação ocorridos nos últimos dias em São Paulo são o sintoma de uma mudança latente: de um modo ou de outro, agora existe Carnaval de rua na maior cidade do país. O problema que se impõe agora é como lidar com isso. Numa metrópole onde vivem 12 milhões de pessoas, qualquer celebração beira o limite da confusão. No bairro da Vila Madalena, o cenário de guerra massacrou a leveza e a alegria que dão o tom do evento no restante do país.
Para quem pensa que limitar os festejos é a melhor alternativa, como tem defendido o secretário de Segurança Pública Alexandre de Moraes, o Carnaval de Salvador provou o contrário. No circuito do Pelourinho, onde não houve cordas separando foliões pagantes (aqueles com abadá) dos não pagantes (os chamados pipoca) nem foi estipulado limite de participantes, registros de lesões caíram 20% em relação ao ano passado. Um milhão de pessoas passaram por ali e o local virou exemplo de folia pacífica, inspirando outros blocos baianos a eliminarem suas divisões. “Quanto menos cordas, menos violência teremos no nosso Carnaval. A corda comprime o folião que está de fora, resultando em brigas”, disse o governador da Bahia Rui Costa.
O Carnaval é uma alegoria da própria vida nas metrópoles: se não houver tolerância, não funciona. O morador da Vila Madalena tem todo o direito à tranquilidade, assim como os foliões também têm o direito à folia (visto que folia e vandalismo são coisas totalmente opostas). Não por acaso, usamos a expressão “brincar o Carnaval”, o que, como toda boa brincadeira, demanda jogo de cintura dos participantes. No Carnaval, assim como em qualquer outra época do ano, é preciso saber ceder, aceitar, negociar e respeitar — ou o convívio de milhões de pessoas num espaço restrito torna-se insuportável, impraticável. Não se trata de criar pretexto para beber e quebrar tudo, e sim de aproveitar a oportunidade de apreciar boa música e exercitar a convivência. É como a vida urbana deve ser, sempre.
Infelizmente, desfecho semelhante já havia acometido a Virada Cultural, que chegou a ser o maior evento do gênero do país para em seguida ser pulverizada em shows menores e mais espalhados e assim evitar arrastões, pancadarias, furtos, depredações e até pessoas baleadas e esfaqueadas. O show do Racionais MCs na Praça da Sé em maio de 2007 entrou para a história pelas cenas de pânico e confronto entre policiais e espectadores pelas ruas do centro.
Por que os enfrentamentos da Vila Madalena não acontecem no Rio de Janeiro, no Recife ou em Salvador, onde o Carnaval reúne muito mais gente? Pode-se culpar a falta de tradição do Carnaval de rua de São Paulo, que por décadas amargou a decadência e o esvaziamento dos blocos. Mas Belo Horizonte, que viveu decadência semelhante, conseguiu retomar a folia para a qual não tem tradição sem maiores incidentes. O bloco Magnólia homenageou o Carnaval de Nova Orleans, cidade americana que tem uma das celebrações de rua mais tradicionais do mundo, com jazz ao vivo.
A própria Nova Orleans pode servir de inspiração a São Paulo — não para um bloco, e sim na busca por uma fórmula de diversão sem violência. Batizado de Mardi Gras (Terça-feira Gorda, em francês), o Carnaval da cidade foi iniciado em 1837 e inclui máscaras, desfiles e cortejos de jazz com música ao vivo. O slogan é Laissez les bons temps rouler, ou deixe os bons tempos rolarem, o que resume bem o espírito do evento. Com índices de criminalidade altíssimos e o rastro de destruição deixado pelo furacão Katrina em 2005, Nova Orleans tem feito enorme esforço para se reerguer usando a própria cultura como ponto de partida. O prefeito democrata Mitch Landrieu, reeleito em fevereiro do ano passado, foi o primeiro branco a assumir o cargo após trinta anos de gestores negros — o último branco a ocupar a prefeitura havia sido seu pai, Moon Landrieu, que governou entre 1979 e 1981. Agora, Landrieu filho encara o tradicional Carnaval como sua chance de resgatar a identidade e a unidade da população.
Neste ano, dias antes do início do Mardi Gras, o prefeito deu declarações entusiasmadas sobre o esquema de segurança montado, com centenas de câmeras de vigilância e 1.150 policiais orientando a folia. Mas, na sexta-feira, véspera do início da festa, um jovem de 19 anos matou outros dois jovens de 21 e de 22 anos a tiros no meio da rua. Na mesma hora, ele foi perseguido por agentes e levado sob custódia. O noticiário voltou-se à tragédia e ao medo de que uma onda de violência estragasse o Carnaval.
O que poderia ter sido um balde de água fria para Landrieu, tornou-se mote do apelo à não-violência e da punição a quem não age pacificamente. “Quem se envolver neste tipo de situação, quem quiser causar estragos em nossa cidade, saiba que nós estamos a caminho para pegá-lo. Vamos processar esse jovem e, infelizmente, ele provavelmente passará o resto de sua vida na prisão”, disse o prefeito numa coletiva de imprensa convocada na própria sexta para acalmar a população. Landrieu foi enfático ao afirmar que o show não pararia por causa daquele episódio. E que crimes, depredações e a violência em geral não seriam tolerados. Afinal, o Mardi Gras é a alma da cidade, o bem comum a todos os cidadãos de Nova Orleans. Nenhum outro incidente foi reportado nos outros cinco dias de agitação. Turistas e celebridades puderam aproveitar toda a programação.
Em São Paulo, o Carnaval de rua já tem corpo, mas ainda falta a alma. Há um descolamento entre causa e efeito: uma vez reunidas no meio da rua, as pessoas simplesmente abstraem ou ignoram a razão que as levou a estarem ali em primeiro lugar. O elo entre os foliões e o evento de que participam parece tênue demais. Na primeira provocação ou na segunda lata de cerveja, a aglomeração já perde o sentido original, e o que era celebração vira confronto. A sensação de estar ali para participar ou pertencer a algo maior dá lugar ao niilismo. E aí, se esvai também o senso se responsabilidade e o respeito por quem está ao lado e pelo espaço público.
São Paulo pode não ter tradição, mas tem, por outro lado, a chance de iniciar uma nova, em que os limites do que é legal ou ilegal estejam bem claros e que haja punições para inibir novos incidentes. E isso, é claro, depende de investimentos em segurança e de um bom planejamento. Só assim o espírito carnavalesco poderá prevalecer e tornar mais leve e agradável a vida na cidade.
Por Mariana Barros
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