Trabalho infantil nas plataformas digitais: as novas formas de exploração
Influenciadores digitais, empreendedores e coaches mirins não estão incluídos nas estatísticas de trabalho infantil, que mesmo assim tem avançado no país
O Brasil vem perdendo seu protagonismo no enfrentamento ao trabalho infantil. De 2023 para 2024, o contingente de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil cresceu 2% e chegou a 1,65 milhão. Um aumento que é visível aos nossos olhos e que também se reflete em outras estatísticas, como a de abandono e evasão escolar.
Escrevi muitos livros, artigos e matérias sobre trabalho infantil. Em praticamente todas as entrevistas que fiz com crianças e adolescentes, o sonho de ir para a escola invariavelmente aparecia, assim como a baixa frequência.
“Há uma relação direta entre a evasão escolar e trabalho infantil”, ressalta Katerina Volcov, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), em entrevista à coluna. “Estatísticas recentes mostram que mais de 1,2 milhão de adolescentes de 15 a 17 anos deixaram a escola”, diz, lembrando que é justamente nessa faixa que houve o maior aumento. Hoje, 915 mil adolescentes entre 16 e 17 anos trabalham no Brasil, o equivalente a mais da metade do total de crianças e adolescentes nessa situação.
Segundos os dados do IBGE, nessa faixa etária a frequência escolar caiu para 81,8%, quase 10 pontos percentuais a menos em relação aos que não trabalham. “Quando uma criança ou adolescente abandona a escola porque precisa trabalhar, ela não apenas perde direitos. Perde também as oportunidades de romper com desigualdades e injustiças sociais”, afirma a especialista.
FORA DAS ESTATÍSTICAS
A situação é grave e o que as estatísticas mostram é apenas a ponta de um iceberg, compara Katerina. Como a Pnad é uma pesquisa por amostra de domicílios, quem vive e trabalha nas ruas, por exemplo, não entra nessa conta. Crianças com menos de 5 anos de idade, no tráfico de drogas, empreendedores, influenciadores digitais e coaches mirins também não.
A secretária executiva do FNPETI critica ainda o fato de o trabalho de influenciadores mirins em ambiente digital vir sendo equiparado ao trabalho infantil artístico. “Sabemos que não são as mesmas atividades”, reforça. “Influenciador digital mirim é uma coisa e trabalho infantil artístico é outra até por conta da Classificação Brasileira de Ocupações e pelo tipo de trabalho que vai ser realizado.”
De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações, o trabalho de influenciador digital abarca uma série de outras atividades, para além das artísticas, como gestão das redes sociais, administração das atividades de relacionamento com o público e seguidores, planejamento e gerenciamento de marketing digital, entre outras.
Segundo a especialista, o ECA Digital (Lei 15.211/2025) é omisso em relação a essa questão. “Fala sobre exploração de modo geral, mas o trabalho infantil de empreendedores e de influenciadores mirins não é contemplado”, lamenta.
A nova lei reforça a proteção de crianças e adolescentes no consumo de conteúdos, mas não dispõe sobre a produção. Uma questão que vem merecendo cada vez mais atenção.
Recentemente, o próprio FNPETI publicou uma nota técnica sobre o assunto. Na Câmara dos Deputados, já existe um grupo de trabalho sobre proteção de crianças e adolescentes em ambiente digital. “Precisamos pensar nos desafios e nos riscos que esse tipo de atividade pode causar à saúde mental. Qual é a lógica de você querer que a criança tenha uma carga de trabalho como influenciador digital?”, questiona a especialista
Outra demanda urgente é a atualização da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, a chamada Lista TIP. “Apesar de o decreto determinar que ela ‘será periodicamente examinada e, se necessário, revista em consulta’, competindo ‘ao Ministério do Trabalho e Emprego organizar os processos de exame e consulta’, isso não foi feito de 2008 para cá. Temos que fazer um debate profundo para essa atualização”, alerta Katerina Volcov. Desde então, novas modalidades, como o trabalho infantil digital, surgiram e a Lista TIP continua a mesma.
Atualmente, 560 mil crianças e adolescentes atuam em condições perigosas, insalubres ou degradantes, as chamadas “piores formas de trabalho infantil”. Um número que deve subir se essas novas modalidades de trabalho infantil forem consideradas num futuro próximo.
LONGE DA META DA ONU
Hoje, o Brasil, que já foi referência mundial em ações de erradicação do trabalho infantil, ainda está longe da Meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, que prevê acabar com todas as formas de trabalho infantil até 2025. Ou seja, dezembro agora.
O trabalho infantil é uma questão complexa, que exige ações continuadas de enfrentamento, o que não vem acontecendo. “Infelizmente, o que temos visto são ações pontuais e descontinuadas”, critica Katerina.
Combater causas estruturais da desigualdade e investir na área social, numa educação pública de qualidade e em geração de renda para as famílias é, segundo ela, parte importante do desafio, assim como a desnaturalização do trabalho infantil e o fortalecimento da rede socioassistencial para atender esses casos.
A fiscalização e os canais de denúncia também precisam ser urgentemente reforçados e aprimorados. Recentemente, o jornalista Matheus Leitão chamou a atenção para o colapso da fiscalização na sua coluna na VEJA. Atualmente, segundo ele, o Brasil conta com apenas 1.842 auditores-fiscais do trabalho para proteger mais de 100 milhões de trabalhadores, o menor efetivo desde 1989.
Para que as denúncias possam ser feitas sem medo, canais como o Disque 100 devem ainda promover formações constantes. “Recentemente, ao receber uma denúncia encaminhada pelo Fórum, a atendente sugeriu que se ligasse para a polícia, quando a conduta correta é só receber a denúncia”, exemplifica a secretária executiva do FNPETI.
Fundamentais para o enfrentamento do trabalho infantil, os Planos Estaduais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil deveriam envolver todas as secretarias estaduais na formulação de estratégias para combatê-lo. O Plano também deve contemplar a realização de um diagnóstico do trabalho infantil no estado, apontando em que tipo de atividade há exploração de crianças e adolescentes, e mesmo a elaboração de campanhas e de análise das políticas oferecidas e do que precisa ser aprimorado.
Apesar de sua importância, das 27 unidades da federação só nove possuem Planos Estaduais e Distrital de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Um deles encontra-se em processo de aprovação, após período de consulta pública, e apenas dois estão atualmente vigentes, segundo dados da pesquisa do FNPETI sobre esse assunto, atualmente em andamento.
“Os planos servem para dar um norte em relação às políticas que farão o enfrentamento ao trabalho infantil e para que, na hora de planejar o orçamento, o governo institua recursos para elas”, explica Katerina Volcov; “Quando não há plano, em geral, também não há orçamento.”
Segundo ela, a descontinuidade de programas e ações que vêm dando certo afeta diretamente os indicadores e a própria proteção integral das crianças. O enfrentamento ao trabalho infantil precisa voltar, com urgência, para a agenda pública.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.
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