Nos anos 90, a revista CLAUDIA, da Editora Abril, publicou uma série de reportagens que fiz intitulada O Brasil que dá certo. As matérias venceram o Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, um dos mais importantes prêmios de jornalismo do país na época. A ideia da série, que mais tarde virou uma coluna fixa na revista, era mostrar como pessoas comuns encontravam soluções simples e extraordinárias para problemas sociais complexos.
Durante um mês, minha equipe e eu visitamos 60 projetos espalhados pelo país e selecionamos 25 deles. Projetos como o de um empresário de Curitiba que adotou uma escola e viu os índices de repetência caírem de 26% para 0,8%, em dois anos; ou de prevenção de câncer de colo uterino, com a realização de exames em atendimentos itinerantes por uma enfermeira de bicicleta que carregava na garupa uma cama ginecológica dobrável, inspirada numa mesa de camping. A iniciativa de um oncologista de Barretos (SP) conseguiu índices de atendimento comparáveis ao de países como Inglaterra e Suécia, oito vezes maiores do que a média brasileira.
Nessa época, praticamente não se falava em “empreendedorismo social”. Apesar de o termo ter sido criado em 1980, por Bill Drayton, fundador da Ashoka, para identificar negócios inovadores para enfrentar grandes problemas sociais, o tema só entrou definitivamente para a agenda do país, em 2005, com o Prêmio Empreendedor Social.
BONS EXEMPLOS
Realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, em parceria com a Fundação Schwab, braço do Fórum Econômico Mundial, a premiação completou 20 anos, na terça-feira passada (12/11), numa cerimônia emocionante que me fez lembrar desse Brasil que dá certo. Uma nação à parte, construída por milhares de pessoas comuns e anônimas que acreditaram no seu sonho de transformar o país e começaram a fazer isso no bairro e na cidade em que vivem.
“Na crítica bem-humorada atribuída ao político americano Adlai Stevenson, ‘a imprensa separa o joio do trigo e publica o joio’. No entanto, cada vez que lançamos luz sobre os frutos do empreendedorismo social brasileiro, invertemos essa lógica, destacando o que há de melhor”, diz Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha, em artigo publicado no livro Uma jornada de inovação social 2005-2024 (Folha de S.Paulo, Schwab Foundation e Mol Impacto, 2024), para comemorar os 20 anos do prêmio.
Exemplos não faltam. Neste ano, o prêmio teve entre os finalistas na categoria Inovadores Sociais do Ano iniciativas de uso de inteligência artificial para melhorar a redação de alunos no Enem (Letrus); de inclusão bancária e antecipação de pagamento para trabalhadores precarizados, como entregadores (Trampay), e de restauração de terras degradadas em biomas ameaçados (Belterra Agroflorestas). Venceu a Belterra, startup que substituiu pasto e monocultura, em áreas desmatadas de sete estados, por agroflorestas.
Na categoria Soluções que Inspiram, o júri escolheu Simony César como vencedora. Vítima de violência em uma parada de ônibus e filha de ex-cobradora, Simony usa tecnologia contra a importunação sexual no transporte. Quando chega uma denúncia, o sistema Nina alerta as autoridades e as equipes de videomonitoramento, que podem resgatar imagens do que aconteceu. A vítima recebe o registro da denúncia e orientações para suporte psicossocial e jurídico. Ainda em estágio de desenvolvimento, a plataforma Super Nina já beneficia 550 mil usuários que circulam diariamente na frota de 1.300 ônibus de Fortaleza. Cerca de 3 mil denúncias de assédio sexual foram registradas em 18 meses de operação da plataforma, e 10% delas viraram inquérito policial.
Foi uma escolha difícil. Entre os finalistas nessa categoria estavam iniciativas como a Revolusolar, ONG que construiu a primeira cooperativa de energia limpa, com placas solares, em uma favela no Brasil, no morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. E também a ONG Fiquem Sabendo, liderada pela jornalista Maria Vitória Ramos, cuja principal missão é dar transparência a informações de interesse cívico. Um exemplo foi abrir a caixa-preta das pensões pagas a militares e parentes, gastos de R$ 500 bilhões, ocultos havia 100 anos.
Pela primeira vez, uma pesquisa mediu o impacto dessas iniciativas no país. Realizado pelo Datafolha, o levantamento segue a mesma metodologia aplicada pela Fundação Schwab para avaliar impacto em escala mundial em 2020. A pesquisa também teve a participação da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Fundação Dom Cabral (FDC), que contribuíram com análises dos dados.
Os resultados do estudo, que ouviu 101 lideranças que integram a Rede Folha de Empreendedores Sociaoambientais, mostra o avanço e a resiliência do campo brasileiro. Ao todo, os empreendedores sociais já beneficiaram 330 milhões de pessoas, 1,5 vez a nossa população atual. Em 2023, foi mobilizado R$ 1,7 bilhão pelos empreendedores que participaram da pesquisa, o que demonstra a força do terceiro setor e do setor 2.5, como são classificados os negócios de impacto.
Um dos aspectos destacados por Edgard Barki, coordenador do Centro de Empreendedorismo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), em artigo publicado no livro sobre os 20 anos do prêmio, é que entre as organizações participantes, 76% atuam nas periferias, sendo que 23% das lideranças vêm dessas regiões.
Como diz Eliane Trindade, jornalista e editora do prêmio desde 2014, essas lideranças nos inspiram ao nos fazer crer em um mundo mais justo e sustentável. São pessoas comuns que acreditaram na mudança e fizeram acontecer não num futuro distante, mas agora. Um verdadeiro celeiro de políticas públicas que merece ser festejado.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.