A barbárie no Rio de Janeiro e o impacto da violência armada nas crianças
Operações policiais como a do Rio de Janeiro, a mais letal já registrada no país, trazem prejuízos também à educação e à saúde de crianças e gestantes
Há uma semana, o Rio de Janeiro viveu a operação policial mais letal já registrada no Brasil. A ação nos Complexos da Penha e do Alemão deixou, de acordo com dados oficiais, 121 mortos.
Segundo a Secretaria Municipal de Educação 48 escolas foram impactadas, 31 na região do Alemão e 17 no Complexo da Penha. Trinta e cinco unidades da rede estadual também suspenderam as aulas. A Clínica da Família Zilda Arns fechou as portas e mais de 120 linhas de ônibus tiveram os itinerários alterados.
A operação, que mobilizou cerca de 2,5 mil agentes, reacendeu um debate importante sobre a letalidade policial e os impactos dessas ações nas favelas. “Não pode ser natural você ir para um território onde tem milhares de pessoas e querer fazer uma operação a céu aberto colocando as famílias em pânico, colocando as crianças fora da escola”, discursou no plenário a deputada federal Benedita da Silva (PT), de 83 anos, que morou 57 anos na favela.
Em geral, as repercussões no dia a dia do morador das comunidades, em especial das crianças, lembradas pela deputada Benedita, ficam fora da cobertura da mídia e das estatísticas, que costumam destacar apenas números. Números de mortes, de arsenal apreendido e de ruas fechadas.
PREJUÍZOS NA EDUCAÇÃO E NA SAÚDE
Em dias de operação, as famílias são impedidas de acessar serviços básicos, como postos de saúde, creches e escolas, e mesmo de sair ou de chegar em suas casas.
Em uma coluna recente, abordei os prejuízos desse tipo de ação para a educação. De acordo com o estudo Primeira infância nas favelas da Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado, em dez anos, uma criança de comunidade perderá, em média, um ano e meio de aula em virtude de operações policiais. Os dados são dos boletins anuais de segurança pública produzidos pela organização Redes da Maré e dão a medida do estrago a longo prazo.
Lançado no final de outubro, outro estudo da Redes da Maré e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estimou, pela primeira vez, o impacto das operações policiais na vacinação das crianças e no acesso à saúde.
“Num dia de operação em que pelo menos uma unidade de saúde é fechada, a vacinação infantil cai cerca de 90%”, lamenta Carolina Dias, uma das coordenadoras do Eixo Direito à Saúde da ONG Redes da Maré, em entrevista à coluna.
Em 2024, foram 43 dias com operações policiais e, em 22 desses dias, ao menos uma das seis unidades de saúde do território precisou fechar. Em dias sem operações policiais e com funcionamento normal das unidades, foram vacinadas 89 crianças em todo o território do complexo da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas do Brasil, com quase 125 mil habitantes. Nos dias de operação policial em que ao menos uma unidade fechou, apenas 9 crianças foram vacinadas. O número de doses aplicadas despencou de, em média, 187,3 para 20.
A tendência se repetiu no primeiro semestre de 2025. Nos dias em que não houve operação policial, a média de doses aplicadas por dia foi de 176,7 e a média de crianças vacinas foi de 76. Em dias em que houve operação policial em que pelo menos uma das unidades fechou totalmente, o número médio de doses aplicadas caiu para 21,1 e o de crianças vacinadas para 11.
Os resultados foram obtidos a partir do cruzamento de dados de vacinação do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações e do registro de operações policiais do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré, que há dez anos acompanha e coleta dados durantes as operações policiais no território.
“As operações policiais impactam até quem não é diretamente afetado por elas porque as pessoas ficam com medo de circular pelo território”, diz Carolina. O clima de tensão dificulta, segundo ela, o acesso das famílias às unidades.
“Se a política de segurança está gerando esse impacto na política de saúde, ela precisa ser revista. Temos uma política de Estado que perpetua essas barreiras”, afirma, sinalizando que esse retrato também pode ser visualizado em outros lugares.
Perder a oportunidade vacinal dessas crianças, mesmo que seja um atraso pontual, pode ter impactos em todo o território. Ao comprometer a imunidade coletiva da comunidade, a violência armada tem um impacto direto na saúde pública.
“Não vacinar uma criança é desproteger todas as crianças do território”, afirma a especialista, ressaltando que não foi possível determinar se a vacina perdida em um determinado dia foi aplicada em outra unidade ou mesmo em outro dia.
De acordo com o relatório, entre 2016 e 2024 aconteceram 215 operações policiais no complexo e 123 conflitos entre grupos armados. Não sabemos, no entanto, os impactos deles a longo prazo tanto na imunização quanto na saúde. Para isso, serão necessárias outras pesquisas, segundo a especialista.
Na área de saúde, os prejuízos não se restringem à vacinação. Além dos dados quantitativos, o estudo reúne relatos de gestantes, mães, cuidadoras de crianças de 0 a 6 anos e agentes comunitários de saúde, que apontam que a violência armada impacta o acompanhamento pré-natal e os primeiros meses de vida das crianças, com consultas canceladas e exames perdidos.
Um estudo publicado pela Redes da Maré em 2023 revelou que 64,6% dos respondentes enfrentam algum tipo de dificuldade no acesso ao direito à saúde e equipamentos públicos na Maré. Em algumas favelas, a situação é especialmente grave, como no Parque Maré, onde 50,7% afirmaram ter dificuldade de acessar os serviços de saúde “o tempo todo”. Percentual semelhante ao do Parque Rubens Vaz, com 45%, e ao de Salsa e Merengue, com 43,7%.
IMPACTOS TAMBÉM NA SAÚDE MENTAL
Também há impactos importantes na saúde mental dos moradores e na sociabilidade e no lazer das crianças. “Ouvimos relatos de que há meninos e meninas que têm tanto medo de que aconteça uma operação que não querem mais sair de casa. No dia seguinte a uma ação, muitos também não querem voltar para a escola”, diz a especialista.
Entre as recomendações do relatório do Unicef e da Redes da Maré estão enfrentar e reduzir a violência armada; ampliar a vacinação em espaços intersetoriais, utilizando modelos combinados como escolas, Cras, Creas e visitas domiciliares; implementar protocolos de resiliência em serviços e comunidades, priorizando a primeira infância e a população negra; além de criar e fortalecer modelos de reparação de aulas e de tratamentos e consultas perdidas, por exemplo.
Segundo a publicação Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025, lançada no primeiro semestre deste ano pela Fundação Abrinq, 31,5% da população residente em favelas e comunidades urbanas no país é composta por crianças e adolescentes com até 19 anos. Em números absolutos, isso representa 5,1 milhões de meninas e meninos vivendo nessas áreas, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, do IBGE.
Milhares de meninas e meninos que estão tendo, muitas vezes, o acesso a seus direitos básicos negados, por conta de operações policiais desastrosas como essa. Uma política de “segurança” pública que privilegia a guerra, o confronto e não a inteligência policial e a ação investigativa.
Como diz a nota do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há, sim, soluções contra o crime organizado e elas passam pela promoção da cidadania em territórios hoje dominados pelas facções e milícias, pela coordenação federativa e pela superação da ideia de empilhar corpos.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.
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