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Três sorvetes e uma Taça

Deslumbrado, compreendi que poderia tomar sorvete e ouvir o jogo, e depois desconcertar a caipirada lá em casa com o mistério da minha ubiquidade

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 29 jun 2018, 21h25

Há exatos sessenta anos, o Brasil vencia a Suécia na Copa de 1958, conquistando seu primeiro título mundial. Para comemorar aquele histórico 29 de junho, a coluna republica o texto que narra o jogo pelos olhos de um menino de oito anos.

“Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol”, estranhou minha mãe quando avisei que estava de saída para a sorveteria do Abbud. Ela vai ouvir o jogo contra a Suécia?, também estranhei ao vê-la de pé a um metro do rádio, com a caçula no colo e querendo saber dos dois filhos sentados no sofá como era mesmo o nome do juiz. Pensei que dona Biloca não gostasse de futebol.

Eu gostava. Aos 8 anos, ia me entendendo melhor com a bola, meu pai já avisara que eu era torcedor do Palmeiras e tinha decorado antes da estréia contra a Áustria os nomes dos 22 craques da Seleção. Gostava mais de jogar futebol que de ouvir, mas vinha acompanhando as batalhas da pátria em chuteiras na Guerra da Suécia pelo rádio da minha avó, uma imigrante italiana que se juntara à torcida brasileira ao descobrir que o elenco incluía um Bellini, um Mazzola, um De Sordi e um Dino Sani. Eu sabia que o time canarinho estava fazendo bonito, que Garrincha destroçara o futebol científico da comunistada russa e que, naquele domingo, o duelo em Estocolmo não se limitaria a decidir a Copa: também seria decidido se o Brasil tinha jeito.

O que eu não sabia é que seriam declarados traidores da nação em perigo, e sumariamente condenados à execração perpétua, sem direito a recursos encaminhados a instâncias superiores ou apelações julgadas por tribunais internacionais, todos os brasileiros ─ incluídos os recém-nascidos e os mortos do mês, os índios da Amazônia e os imigrantes procedentes de remotíssimas paragens, as normalistas oferecidas e as carmelitas descalças, os inimputáveis em geral e os loucos de hospício em particular ─ que no dia 29 de junho de 1958 pensassem em qualquer outra coisa além da conquista da Copa. Disso eu não sabia. E gostava muito de sorvete. Acordei pensando não nos dribles de Garrincha ou num gol de Pelé, mas num sorvete de limão.

“Volto antes da metade do primeiro tempo”, comecei a explicar quando fui aparteado por um dos irmãos. “Não dá, são quinze quarteirões. Fala logo que não gosta de futebol”, provocou o inimigo íntimo. Acusei-o de ter passado na casa de um amigo a tarde do duríssimo combate contra o País de Gales. “Só que ouvindo o rádio, não tomando sorvete”, ele mandou no ângulo. “Esse moleque é meio bobo”, resumiu o pensamento geral meu irmão mais velho. Estava planejando um carrinho por trás quando meu pai entrou em casa e os dois times entraram em campo. Aproveitei a distração dos adversários, fingi que recuava para proteger a retaguarda e invadi o quarto. Precisava de uma camisa. O dia estava frio.

O inverno ia chegando ao meio, e ainda havia no sertão paulista outras estações além do verão que acabaria eternizado pelo oceano de cana que engoliu primeiro as plantações de café, depois os laranjais e enfim, quando já não restavam campos a afogar, até os casarões das fazendas, as tulhas, os canteiros, as hortas e os quintais. Vesti uma camiseta verde, sem distintivo nem número nas costas. Continuei descalço. E com aquele calção detestável que todos os menores de 10 anos usavam, feito pelas mães e tias com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de alguma calça de adulto derrotada pelo tempo.

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Se me tratassem com mais cortesia, talvez tivesse deixado o sorvete para depois do jogo. Sob pressão é que não fico em casa mesmo, cismei. E não vou trazer sorvete para essa gente. Nem para a avó, radicalizei no momento em que o juiz, um francês chamado Messiê Guiguê conforme berrou a voz no rádio, apitou o começo da partida e da caminhada rumo à sorveteria. E então estranhei a paisagem: não havia ninguém na rua da minha casa.

Nem na rua General Glicério nem na Marechal Deodoro, fiquei intrigado no segundo minuto de jogo e na primeira esquina. Nem em qualquer outra rua de Taquaritinga, espantei-me aos 4 minutos do primeiro tempo, quando cheguei ao cruzamento da General Glicério com a Duque de Caxias junto com o gol da Suécia marcado na calçada da casa do médico da minha família e transmitido pelo locutor, sem entusiasmo, pelo rádio do sobrado de um vereador que não gostava do meu pai.

Haviam sumido das calçadas e das varandas os quase 10 mil habitantes, e todos os carros estavam nas garagens ou estacionados na rua. O único sinal de vida era a voz do locutor. Achei aquilo muito estranho e achei mais sensato desistir. Caminhei com Didi, ambos lentamente, ele em direção do meio de campo, com a cabeça erguida, a bola na mão esquerda e tranqüilizando o time, eu de volta para casa, cabisbaixo, de mãos abanando e tentando preparar-me para a capitulação humilhante que só não foi consumada porque, aos 9 minutos, Vavá empatou na frente do portão do dentista.

Todo mundo estava ouvindo o jogo, confirmou a universalização da voz poderosa que se sobrepunha ao berreiro coletivo, a mesmíssima voz agora vinda de todos os pontos cardeais, do céu e da terra, multiplicada por dezenas, centenas, milhares de aparelhos ligados na mesma estação, atravessando todas as janelas que todas as famílias haviam escancarado para que até os jardins, os pomares ou algum transeunte desavisado testemunhassem, sem perderem um único centésimo de segundo, o triunfo da Seleção incomparável. E então os ouvidos atentos como os olhos do goleiro Gilmar captaram o recado sonoro: era só seguir o caminho das casas.

Deslumbrado, compreendi que poderia tomar sorvete e ouvir o jogo, e depois desconcertar a caipirada lá em casa com o mistério da minha ubiquidade, porque nenhum parente sabia o que eu acabara de saber e não contaria nem sob tortura. Montei o novo plano com a serenidade de um Feola. O roteiro redesenhado pelas circunstâncias singularíssimas agora passaria ao largo de clubes, repartições públicas, associações, bares ou botequins, estabelecimentos comerciais, escolas – tudo que pudesse estar fechado ou desprovido de aparelhos de rádio.

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Subi outra vez pela General Glicério, virei à esquerda na Duque de Caxias com a elegância sutil de Nilton Santos, arranquei rente à lateral direita como Djalma Santos, parei feito Orlando diante do adversário na esquina com a Campos Salles, virei o jogo para a direita como Zito e corri para o abraço quando Vavá desempatou debaixo da segunda janela do advogado que discursava nos comícios do meu pai.

O Brasil descia para o vestiário e eu driblava o terreno da Força e Luz para virar à esquerda na esquina da Campos Salles com a Visconde do Rio Branco. O jogo estava no intervalo quando enxerguei a fachada da sorveteria. Hoje é meu dia, avisaram as portas abertas. Além de quatro homens sentados na mesa perto do rádio, que nem me olharam, lá estava um dos donos, que ouviu o pedido sem deixar de ouvir o comentarista.

Antes de terminar o palito de limão, descobri que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela Bandeirantes, e que o primeiro tempo fora transmitido por Pedro Luiz. Edson Leite narraria o segundo, soube no palito seguinte, outra vez de limão. Igualmente soberba, a voz menos veloz e mais grave que a outra avisou: “Estão  começando os 45 minutos que decidirão a sorte do Brasil na Copa do Mundo”. Pedi uma casquinha de abacaxi, só para variar, levantei-me certo de que a Taça já era nossa e fiquei com cara de campeão no momento do golaço de Pelé ao lado da casa do tesoureiro da prefeitura, no fim do primeiro quarteirão do caminho de volta.

Zagallo encaçapou de bico perto da jabuticabeira da minha professora do jardim da infância. Nem me abalei com o segundo da Suécia, marcado em frente do casarão com fama de assombrado ─ em clamoroso impedimento, soube por Edson Leite. Resolvi ganhar alguns minutos para entrar em casa no apito final, mas nem pensei em administrar a posse de bola, isso só existiria no futuro, não naquele junho em que o negócio era jogar pra frente, ou ficar driblando meio mundo, e por isso resolvi aproveitar a falta de espectadores para reproduzir os melhores lances imaginários.

Saí pela direita como Garrincha na esquina, percebi que voltara ao ponto de partida depois da quarta arrancada, sempre pela direita, e achei mais lógico avançar sem pressa como Didi, ultrapassei o Chevrolet rabo-de-peixe do doutor Luizinho Barbosa, encobri com um chapéu o Mercury preto do prefeito, escorei a bola de cabeça junto com Pelé no portão de casa, comemorei o quinto gol com a mão na maçaneta e entrei na sala gritando “Brasil!!!”

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“Chegou o único do mundo que não ouviu o jogo”, debochou o irmão mais velho. “Esse bobo não gosta de futebol”, o outro pegou-me de novo no tornozelo. Revidei com elogios à qualidade do sorvete e à voz dos dois locutores, a narração detalhada dos cinco gols da pátria em chuteiras, um sorriso de campeão do mundo e aquele brilho no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958.

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