Estou na mesa do restaurante com Tancredo Neves em busca de mais informações para a edição especial de VEJA que vai circular logo depois de 15 de janeiro de 1985, quando o Colégio Eleitoral escolherá o primeiro presidente civil depois de 20 anos de regime militar. José Roberto Guzzo, diretor de redação, e Elio Gaspari, diretor-adjunto, monitoram o tempo todo o trabalho do trio de repórteres, completado por Guilherme Alves e Etevaldo Dias, chefe da sucursal de Brasília.
Naquela noite de novembro, o copioso material já reunido é suficiente para sustentar a chamada de capa: A História Secreta da Sucessão. Havia muito mais a descobrir, mostrariam as semanas seguintes. A conversa em Belo Horizonte confirma que, para Tancredo, ainda há pedras a remover no caminho que desemboca na rampa do Palácio do Planalto. Mas parece desimpedido ao menos o trecho a percorrer até o Colégio Eleitoral. O candidato da oposição está convencido de que vai vencer Paulo Maluf na última eleição presidencial sem povo.
─ Maluf deixou de ser uma opção razoável, eles não tem escolha ─ diz, abrangendo com a terceira pessoa do plural simpatizantes recentes, gente ainda hesitante e e adversários cada vez menos dispostos a engolir a alternativa endossada pelo general-presidente João Figueiredo.
(Talvez já estivesse pensando no discurso da vitória, ficarei desconfiado em 15 de janeiro, ao ouvir outra citação de bom gosto do presidente eleito: “Com o êxtase e o terror de haver sido o escolhido, como diria Verlaine, entrego-me, hoje, ao serviço da Nação”. Por decisão de 480 dos 686 integrantes do colégio reunido no Congresso, contra 180 que optaram por Maluf, o 29° chefe de governo do Brasil republicano seria aquele mineiro de 75 anos, baixo, calvo e de nariz arrebitado, a barriga um tanto pronunciada pressionando os botões dos ternos bem cortados e olhos escuros e vivos que se apertavam no sorriso jovial).
─ Morro de medo quando meu nome fica em evidência ─ começa Tancredo a repetir uma das frases prediletas. ─ Nunca me convidam para um banquete. Só se lembram de mim na hora da tempestade.
Esse homem é capaz de conseguir algum tipo de acerto até num Maracanã em dia de Fla-Flu, penso.
─ Mas não aceito o entendimento a qualquer preço ─ ele replica ao que eu não disse. ─ A conciliação só pode ser feita em torno de princípios. É também por isso que acho mais complicado conseguir um acordo entre contrários do que uma vitória eleitoral.
O domador de tempestades teve um desempenho especialmente luminoso na crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961. Recolhido ao casarão em São João del Rey, onde nasceu, convalescia desde outubro do ano anterior da derrota para Magalhães Pinto na disputa pelo governo de Minas Gerais. E examinava a idéia de encerrar a carreira política quando o destino o remeteu ao olho do furacão.
Decolou para Brasília a pedido do general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar do governo que, formalmente presidido pelo deputado Ranieri Mazzili, estava sob a tutela dos ministros do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. A trinca, contou-lhe Geisel, não admitia a entrega do cargo abruptamente desocupado ao vice João Goulart, em viagem oficial à China. Como o governador Leonel Brizola, entrincheirado no Palácio Piratini e apoiado pelas tropas aquarteladas no Rio Grande do Sul, exigia a posse de Jango, as dimensões e a tonalidade das nuvens anunciavam um temporal de bom tamanho.
É coisa para o doutor Tancredo, concordaram os comandantes militares. Era mesmo. Poucos dias e muita conversa depois, o conciliador vocacional fechou o acordo que afastou o fantasma da guerra civil. O vice tornou-se presidente, mas com poderes reduzidos pela adoção do regime parlamentarista. A escolha do nome do primeiro-ministro foi feita sem disputas, debates ou dúvidas. Só podia ser Tancredo Neves.
Mais de vinte anos depois, de novo só podia ser Tancredo Neves o candidato da mais multifacetada aliança política da história republicana. Nenhum outro juntaria na mesma campanha todos os “autênticos” e todos os “moderados” remanescentes do PMDB. Nenhum uniria num só bloco todos os partidos de oposição, com a exceção previsível do PT, que optou pela abstenção. Nenhum atrairia tantos governistas dissidentes. E nenhum escaparia ao veto ostensivo de oficiais inconformados. Se não existisse um doutor Tancredo, o Brasil teria de esperar sabe-se lá quanto tempo ainda pela ressurreição da democracia.
Ele está em boa forma, equivoco-me ao ouvi-lo pedir um licor depois da sobremesa. É provável que já estivesse suportando as dores que esconderia até 14 de março, quando o país pronto para festejar a posse do eleito foi abalado pela notícia da primeira cirurgia. Escondeu-as por achar que o presidente Figueiredo não aceitaria passar a faixa presidencial nem a José Sarney, vice-presidente eleito, nem a Ulysses Guimarães, presidente da Câmara.
─ Vejo o senhor em Brasília ─ despeço-me na calçada em Belo Horizonte.
É um sorriso cansado, noto enquanto me deseja boa viagem.
─ Vejo o senhor no Palácio do Planalto ─ ainda me ouço dizendo em 15 de janeiro, achando mais cansado o sorriso do presidente eleito.
Não voltei a vê-lo vivo.