Deonísio da Silva
“Bom dia, tristeza”, é a frase que me vem todas as manhãs ao ouvir rádio, ver televisão ou ler as notícias em jornais, revistas e redes sociais. O Brasil, onde vive um povo alegre, começa triste todos os dias na mídia, onde somos apresentados como um país que era do futuro, o futuro chegou e com ele a morte no Paraíso. Mas, saia de casa ou apenas abra a janela ou um livro, é mesmo assim o país que nos coube por destino?
É verdade que no Brasil atual há vários processos judiciais em curso envolvendo políticos e empresários notáveis, acusados de terem sido flagrados em negócios, fraudes, trapaças, compras de voto e outros crimes. Mas haverá outra alternativa que não seja a de condenar ou absolver os envolvidos — um em especial, aliás! — em vez de escrever sobre o tema sem nenhuma destas duas preocupações hegemônicas, e, sim, fazer com que o distinto público entenda o que se passa nas profundezas escuras da alma de cada réu, para além da pobreza do viés com que são usualmente apresentados, mesmo quando se trate de delação premiada.
Enquanto se busca absolver políticos comprovadamente culpados e condenar notórios inocentes, que tal jogar no cenário uma luz vinda de outra direção, para evitar que sejam apresentadas sempre só duas questões: a favor ou contra uma operação da Polícia Federal conhecida por todos por “Lava Jato”, grafada assim mesmo, com um erro de português que não parece incomodar a ninguém.
“Uma história não termina enquanto algo não dê errado por completo”, dizia o escritor suíço Friedrich Dürrenmatt, autor de A Pane, premiada e instigante narrativa curta, levada ao ar também em forma de novela de rádio.
A história começa na última tarde de vida (ele não sabe que será a última) de um mascate saudável, de 45 anos, casado e pai de quatro filhos, quando enguiça o carro em que viaja e não há como consertá-lo a não ser na manhã seguinte. No pequeno povoado, todas as pousadas estão reservadas para um congresso de Proprietários de Pequenos Animais de Criação.
O caixeiro-viajante poderia voltar de trem para a cidade onde mora, mas lembra-se de que outros colegas de profissão falavam de garotas nestas vilas, capazes de levar um homem, por mais honesto que fosse, ao adultério. Então, resolve pernoitar na vila apenas com esta esperança. É acolhido pelo dono de uma casa que vez por outra recebe para um pouso.
A noite vai chegando e o anfitrião, um juiz aposentado, convida o hóspede para jantar com ele e mais três amigos que chegarão mais tarde: um carrasco, um promotor de Justiça e um advogado, todos já aposentados e também anciãos.
Ele pensa em recusar, não quer aproveitar-se da bondade do outro, que não ia cobrar nada pelo pernoite, mas aceita o convite. Será a última noite de sua vida (ele não sabe que será a última) sem que haja qualquer culpa ou dolo da parte dos três convivas com os quais fará a última e lauta refeição. Ele não sabe que será a última.
O que acontece nesta narrativa curta é de arrepiar e pode ser degustado parágrafo a parágrafo. Dürrenmatt, filho de um pastor protestante e neto de um político conservador, certamente terá se inspirado neles para construir seus fascinantes personagens. O avô, poeta e editor de um jornal no cantão de Berna, cujo dialeto lutou para tornar oficial, defendia uma Suíça cristã, camponesa e federada, numa época em que seu país rumava para tornar-se um moderno estado industrial.
Por entretenimento, os três costumam realizar julgamentos de mentirinha e o daquela noite teve como réu o convidado. Durante o jantar, de final trágico, mas muito divertido no entrecho, embora deixe por vezes apreensivo o mascate, são exarados diversos conceitos filosóficos, psicológicos e políticos, sem que em nenhum momento pareçam pedantes ou ao menos pernósticos.
Ainda mais quando regados pelos bons vinhos servidos durante a insólita tertúlia. As garrafas trazem rótulos de um conhecedor e não se pode deixar de registrar mais uma curiosidade biográfica do autor nesses tempos em que muitas universidades ainda jazem imersas nas trevas do estruturalismo, do marxismo e de outros ismos, que ensinam aos alunos que as estruturas e os sistemas determinam mecanicamente tudo, sem que o espírito prevaleça. Dürrenmatt apreciava vinhos de qualidade, adquiridos com os direitos autorais auferidos com suas obras.
Talvez por isso e porque Dürrenmatt não tenha concluído nenhum dos cursos de filosofia, língua e literatura alemãs, que frequentou na Universidade de Zurique e na Universidade de Berna, ele faz com que o promotor, o advogado e o juiz — que exerceram essas profissões, mas já podem evitar o espartilho de protocolos, liturgias e outros recursos comuns nos fóruns — se comportem livres de todas as amarras, com o espírito já modulado pelo vinho, de boa qualidade e servido com generosidade, prontos a realizar um julgamento de fantasia, mas profundamente verdadeiro, o que explicará certamente o trágico arremate.
Não temos ainda o desfecho da operação “Lava Jato”. Talvez a causa seja, então, como resumida por Dürrenmatt: “Uma história não termina enquanto algo não dê errado por completo”.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra