BRANCA NUNES
Em janeiro de 2012, Silvio Navarro, então repórter de política da Folha de S. Paulo, foi escalado para investigar os desdobramentos do assassinato de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André, morto uma década antes em situações mais que suspeitas: “’O caso, em termos de delonga no curso da ação, é emblemático’”, escreveu Navarro logo no primeiro parágrafo da reportagem, reproduzindo a justificativa usada por Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, para conceder um habeas corpus preventivo que colocou em liberdade três acusados pelo crime.
“Ao longo da década, o crime adquiriu contornos de novela policial”, continuou Navarro. “Sete pessoas ligadas ao caso, entre testemunhas e acusados de participação no crime, morreram no período (…). Os promotores sustentam que Daniel teria descoberto um esquema de corrupção na prefeitura para financiar campanhas do PT e que o sequestro teria sido simulado. A tese vai na contramão das conclusões da polícia, que defende a versão de que houve crime comum. O PT acusa os promotores de tentarem politizar a morte”.
Intrigado com a pilha de interrogações sobre o caso, Navarro, hoje editor de política do site de VEJA, dedicou os quatro anos seguintes à tarefa de solucionar o que talvez seja o maior quebra-cabeças da crônica político-policial brasileira. O resultado dessa busca acaba de ser publicado no ótimo Celso Daniel – Política, Corrupção e Morte no Coração do PT, livro que reconstitui o passo a passo do assassinato do ex-prefeito, desde o jantar que antecedeu a morte, até a localização do cadáver, passando pelas investigações da polícia e da promotoria e pelas prováveis motivações do crime.
“Celso Daniel aceitava o esquema de propinas instalado em sua gestão, mas apenas enquanto os recursos ilícitos tiveram como destino a tesouraria paralela de seu partido”, contou Navarro na resenha do livro publicada na edição impressa de VEJA. “Ele só reagiu quando soube que os desvios engordavam o patrimônio de figuras alheias à máquina política instalada em Santo André”.
Embora não desvende o grande enigma — quem mandou matar Celso Daniel? —, Navarro consegue encaixar um grande número de peças, até então perdidas. Entre as revelações inéditas, ele atesta que havia um terceiro carro na noite do assassinato e que os sequestradores eram oito, e não seis. “A prova cabal sobre quem ordenou o crime, e sobre se tal ordem partiu da cúpula do PT, nunca foi encontrada”, ponderou. Trechos dos grampos da Polícia Federal que compõem o capítulo Conversas Proibidas, entretanto, dão pistas da conspiração forjada pelo partido para impedir que o assassinato fosse esclarecido.
O livro, que em menos de uma semana já está na segunda edição, integra todas as listas dos mais vendidos. O lançamento será na próxima terça-feira, dia 1º de novembro, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo.
Confira o primeiro capítulo do livro:
Às 23h19m33s do dia 18 de janeiro de 2002, o soldado de plantão De Paula, da Polícia Militar de São Paulo, atendeu a uma chamada efetuada ao Centro de Operações da Polícia Militar, o Copom, mais conhecido pelos três dígitos de emergência em qualquer canto do Brasil quando o desespero sabota o caminho: 1-9-0.
Do outro lado da linha, uma voz feminina afoita avisava que algo suspeito ocorria no cruzamento de duas avenidas que levam o nome da Virgem Maria na capital paulista: Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora da Saúde, uma encruzilhada na região apelidada Três Tombos, na Zona Sul da cidade de São Paulo, bairro residencial a caminho da rodovia Anchieta, a estrada que leva ao litoral paulista.
– Polícia Militar, soldado De Paula às suas ordens.
– Oi, tem um carro aqui na minha rua, que os ladrões deixaram, está na subida sozinho.
-Onde?
– Aqui na Nossa Senhora da Saú… É Antônio Bezerra, Vila Vera.
– Com a Abagiba?
– É, acho que teve até tiros.
Nesse instante, a ligação é interrompida pelo barulho de disparos.
– Ó, lá!
Qual carro é? – pergunta o policial.
– É uma Blazer, um carro grande, uma Blazer preta.
– Muito obrigado, senhora.
A ligação durou 43 segundos, conforme o horário registrado pelo gravador da polícia.
Na sequência, o telefone do Copom tocou novamente. Eram 23h24m43s. A voz do solicitante agora era masculina.
– Polícia Militar às suas ordens.
– Olha, aqui na Nossa Senhora da Saúde…
– Esquina com a Antônio Bezerra? – devolve o PM.
– Está o maior tiroteio aqui.
– Solicitado por aqui, está bem, senhor?
– Tá.
– Obrigado, senhor.
Nove minutos depois, o helicóptero águia da Polícia Militar entra no circuito, antes de levantar voo, em busca de informações sobre um sequestro em curso.
– Copom, em solo o Águia.
O Copom responde:
– Águia, sequestro do prefeito do município de Santo André. Uma Blazer levou o prefeito e tomou o sentido Anchieta-Imigrantes. Tem um Tempra branco e um Santana escuro na escolta.
O relatório dos diálogos trocados pelo rádio das viaturas da Polícia Militar do 3º Batalhão, responsável pela patrulha do quadrante que envolve os bairros do Jabaquara e da Vila Gumercindo, mostra que, a partir das 23h24h25s, antes mesmo de o serviço 190 encerrar outra chamada, três carros deveriam ser perseguidos: uma Chevrolet Brazer, um Volkswagen de cores escuras e um Fiat Tempra branco.
O operador da Polícia Militar alerta as viaturas em serviço:
– Quem chegar ao local, cautela! Trata-se do sequestro do prefeito Celso Daniel.