Vez por outra, quando surge uma vaga na Academia Brasileira de Letras, os jornais se apressam em anunciar os possíveis candidatos, os colunistas tratam de evidenciar a simpatia e a articulação a favor de um ou outro postulante, mas a nenhum diretor de jornal ou revista de circulação nacional ocorre consultar a opinião pública a respeito do tema. Falo aqui de um largo exercício de democracia participativa, da realização de uma consulta, com regras estabelecidas de votação, comissão apuradora, e tudo o mais que comporta uma eleição séria, com garantia de credibilidade respaldada por uma rigorosa auditoria. Tendo a crer que muitos acadêmicos, se consultados sobre esse assunto, responderiam que a ideia não faz sentido, considerando que somente aos membros da Casa de Machado de Assis cabe opinar e decidir sobre a escolha de um novo imortal.
Acabo de desencavar, porém, os documentos de uma saudável manifestação que vai na contramão desse tradicional comportamento. Ou seja, pelo menos uma vez já se fez consulta pública sobre a questão, patrocinada por respeitável órgão de imprensa, no sentido de sondar o sentimento e a vontade popular a respeito de quem merecia ser incorporado ao prestigioso cenáculo das letras nacionais. A ideia foi posta em prática há 80 anos, logo após o falecimento do escritor e advogado Paulo Setúbal, a 4 de maio de 1937, quando a cadeira de nº 31 foi declarada vaga. Então a revista semanal O Malho, que circulou de 1902 a 1954, e cuja redação funcionava na Travessa do Ouvidor, nº 34, no Centro do Rio, tratou de anunciar, em 22 de maio, que faria uma consulta junto aos leitores de todo o país com o objetivo de identificar quem deveria suceder, na ABL, ao morto ilustre. Uma semana depois publicavam as “Bases” do concurso:
1. A votação terá a duração justa de cem dias, a começar de 20 de maio e terminando a 25 de agosto vindouro. Semanalmente O Malho divulgará as apurações parciais e o resultado final, com proclamação do nome vitorioso na edição do dia 9 de setembro, data em que se realiza, precisamente, na Academia Brasileira de Letras a eleição para preenchimento da vaga de Paulo Setúbal.
2. Cada leitor poderá remeter o número de votos que desejar. Só não é permitido justificar o voto, ou assiná-lo.
3. As apurações serão feitas semanalmente em nossa redação, podendo ser acompanhadas pelos interessados. A apuração final terá lugar no dia 31 de agosto.
4. O intelectual que receber o maior número de votos será homenageado pelo O Malho de forma condigna, e de modo a se fazer ressaltar a significação da sua vitória.
5. Podem ser votados todos os intelectuais vivos do Brasil, exceção feita, naturalmente, dos que já fazem parte da Academia Brasileira de Letras.
A iniciativa alcançou de imediato ampla aceitação. Já em 19 de junho, João Paraguassu, mobilizado pelo tema, escrevia no Correio da Manhã a crônica “A cadeira 41…”, que pela objetividade, e hoje difícil localização, merece transcrição integral:
A Academia Brasileira está voltando a ser objeto de intensas cogitações no nosso microcosmo intelectual. Fala-se, é certo, ainda muito mal dela, mas já se fala algum bem e com mais simpatia. O Malho tem contribuído para isso com os seus concursos. O do naufrágio [sic] dos poetas foi um dos mais interessantes, e dele se salvaram vários nomes que muita gente supunha no rol do esquecimento.
O outro foi o da questão da entrada da mulher no cenáculo. E dessa vez de novo os leitores daquele semanário fizeram obra sensata apontando as merecedoras de um lugar no Olimpo, e forçaram os moradores da casa de Machado de Assis a opinar favoravelmente, em maioria, o que valeu por uma interpretação do texto estatutário fora das quatro paredes do Petit Trianon.
Agora, outro movimento de O Malho agita o mundo dos letrados e focaliza a Academia. É um verdadeiro plebiscito. Quem deverá preencher a vaga de Paulo Setúbal?… As respostas vão surgindo. As preferências se manifestam. Em torno da memória do autor dos nossos melhores romances históricos, do reconstituidor das cenas da conquista do ouro e da caça ao índio, se alvoroçam os partidários dos capazes de receber-lhe o legado ilustre.
O fato deve ser apreciado, porém, pelas suas consequências. De entre os muitos sufragados, um sairá triunfante. Coincidirá a láurea popular com as inclinações acadêmicas?… Se isso acontecesse, seria uma sorte grande para a Academia, porque ela poderia proclamar a sua concordância absoluta com os brasileiros que leem…
Mas não entremos no campo dos vaticínios. Fiquemos na praça. E admitamos que o povo eleja um acadêmico para a “cadeira 41”, aquela em que costumam sentar-se os que nunca se apresentam, e acreditam nas promessas de votos que lhes fazem quase todos, mais ou menos nestes termos:
̶ Se você se apresentar, conte com o meu voto…
Conversa, apenas.
Na primeira apuração parcial Martins Fontes recebeu 11 votos, Plínio Salgado, 9, e Viriato Corrêa 3. A sexta se deu em 1º de julho e trazia o contista Cristovam de Camargo, do Pen Clube, liderando a prova com 151 votos. Na décima segunda o poeta paulista Cassiano Ricardo ficou em primeiro lugar com 998 votos, contra 880 dados a Plínio Salgado, e 398 a Catulo da Paixão Cearense. Na ocasião outros 61 profissionais das letras foram lembrados, incluindo escritoras como Carolina Nabuco e Henriqueta Lisboa (ambas com 18 votos, e isso quando ainda não era permitida às mulheres a glória acadêmica), e futuros membros da ABL como José Américo de Almeida (114), Viriato Correa (77), Oswaldo Orico (28), Gilberto Amado (11) e Pontes de Miranda (10). Nessa apuração sete foram as personalidades que contabilizaram o menor número de votos (4), entre as quais destaco, pelo exotismo dos nomes, e por serem hoje totalmente desconhecidos, Ilnah Secundino, Leal de Souza e Mahatma Patiala (!), pseudônimo de Ariosto Palombo, mais conhecido como João de Minas (que com este nome teve 6 votos na apuração final, enquanto Patiala chegou aos 16).
A décima terceira apuração parcial deu-se em 9 de agosto, quando Cassiano obteve 1.317 votos, Plínio 1.229, e Catulo, 484. Curiosamente Ilnah, Leal e Patiala continuaram no páreo com os mesmos quatro votos obtidos anteriormente. O anônimo redator da revista aproveita a ocasião para informar: “Publicamos hoje a última cédula para votação, e ainda achamos de bom aviso repetir que só serão apurados, no final do certame, os votos que estiverem em nosso poder até o dia 25 do corrente às 18 horas”.
O número de 26 de agosto de O Malho, que presta contas da décima quarta apuração, traz uma surpresa: Plínio Salgado tomara a dianteira, com 1.635 votos, contra os 1.570 de Cassiano e os 497 de Catulo, que continuava firme no terceiro lugar. O resultado final, no entanto, só seria conhecido em 31 de agosto, referendado por laudo assinado pela Comissão Verificadora, “composta dos brilhantes jornalistas Herbert Moses, presidente da ABI, M. Paulo Filho, diretor do Correio da Manhã, Roberto Marinho, diretor de O Globo [ele viria a ser eleito para a ABL em 22 de julho de 1993], e Orlando Dantas, diretor do Diário de Notícias”.
Mas quem, afinal, foi o ungido na ampla consulta popular, com vistas à ocupação da vaga acadêmica, nessa tentativa de um importante veículo de comunicação influenciar a escolha do próximo integrante da ABL? Pasmem: a láurea coube a Plínio Salgado, com espantosos 3.450 votos, mais de duas vezes o total recebido na votação anterior; e isso provavelmente se deu porque os integralistas, na reta final, despejaram o maior número possível de votos na urna do seu condottiero. A revista imediatamente estampou uma imensa foto do personagem, que aparece vestido com a farda do Integralismo, tendo num dos braços a faixa com o sigma, símbolo do movimento. Em comentário não assinado, louvando os talentos do vitorioso, O Malho afirma:
Em 1916 [Plínio Salgado] publicou seu primeiro livro, o romance O estrangeiro, que foi muito discutido e recebeu elogios dos mais notáveis críticos do país.
Essa vitória nas letras foi o ponto de partida para uma grande atividade intelectual, através a qual [sic] se revelou um dos mais firmes manejadores da pena. Jornalista, escritor de ficção, pregador doutrinário, a um tempo, sob qualquer dessas formas se tem revelado homem de cultura, capaz de enfrentar as polêmicas mais sérias como de defender pontos de vista e teorias, com brilho de forma e recursos de inteligência.
Chefiando hoje um grande partido político, goza no país de inegável popularidade e prestígio, e seus livros são publicados em edições sucessivas que se esgotam com rapidez.
O segundo lugar, com 1.927 votos, coube a Cassiano, figura de destaque na estrutura intelectual do Estado Novo. O terceiro posto, devido a 856 eleitores, permaneceu com Catulo. É interessante atentar para o desempenho de futuros acadêmicos na computação final: José Américo de Almeida (190 votos), Oswaldo Orico (114), Viriato Corrêa (91), Josué Montello, que não aparecia anteriormente (16), Gilberto Amado (11), Pontes de Miranda (10), Menotti Del Picchia (3) e Manuel Bandeira (1). É preciso também acentuar, na lista decisiva, a presença de escritores que nunca entraram para a ABL, seja porque não conseguiram se eleger, como se deu com Bastos Tigre (360) e com o poeta Jorge de Lima (13), seja pelo fato de jamais terem se candidatado. Entre os mais relevantes desse último contingente, nas letras e na política, merecem destaque: Henriqueta Lisboa (49), Carolina Nabuco (27), Rosalina Coelho Lisboa (12), Gilka Machado (12), Graciliano Ramos (10), Afrânio de Melo Franco (3), Luiz da Câmara Cascudo (2), Francisco Campos (1) e Gilberto Freyre (1).
A surpresa que se seguiu à manifestação pública de apreço às qualidades intelectuais de Plínio Salgado foi sua decisão de não concorrer à sucessão de Paulo Setúbal. O que terá pautado esse gesto? O sentimento de que uma disputa para a ABL pode ser mais difícil e cheia de surpresas do que uma eleição para o Senado ou a Câmara dos Deputados? A interrogação se torna ainda mais pertinente quando se toma conhecimento dos fatos que se seguiram: Cassiano Ricardo, o autor de Martim Cererê, foi eleito acadêmico no quarto e último escrutínio, com 18 votos, em 9 de setembro de 1937, tendo por concorrentes Viriato Corrêa (3), Bastos Tigre (4), Jorge de Lima (5) e Basílio de Magalhães (3), o único que não aparece em nenhuma das votações promovidas por O Malho. A revista informa que Sílvio Júlio, que recebera apenas um voto, também concorreu, mas retirou sua inscrição antes do pleito.
No número de 16 de setembro, O Malho se congratula com seus leitores e com a ABL pela inclusão de Cassiano aos seus quadros, e acentua:
Não pomos dúvida alguma de que muito tenham influenciado sobre os membros da Academia as ponderações que aqui temos expendido, muito embora o nome do eleito e o seu valor literário não sejam daqueles que, para se imporem, necessitem de campanhas como a que realizamos e que vem agora se cobrir de êxito.
Dissemos em nossa edição passada que qualquer dos candidatos inscritos estava à altura de ser eleito e por isso mesmo a Academia talvez acabasse por recusá-los a todos para preferir um medalhão político [grifo nosso]. Felizmente, porém, nosso prognóstico não se realizou e a cadeira que Paulo Setúbal ocupou, por tão pouco tempo mas tão brilhantemente, vai receber agora uma das legítimas expressões da inteligência e da poesia patrícias.
O Malho está vitorioso, e a grande massa de seus leitores se pode orgulhar de ter feito com que a Academia Brasileira de Letras retomasse, pelo menos por esta vez, o único caminho que poderá levá-la a reabilitar-se com o público brasileiro, se continua a ser trilhado [grifo nosso].
Afora a saudação ao novo imortal, paulista de São José dos Campos, o público da revista foi brindado com a foto do homenageado. Já a edição de 7 de outubro transcreve a carta de agradecimento que Cassiano enviou de São Paulo, datada de 22 de setembro, ao “meu caro redator”, na qual agradece a atenção a ele dispensada, e por fim ressalta ter sido nas páginas de O Malho que, há 20 anos, estreara na literatura.
Bem fariam os nossos diretores de redação, sempre que a ocasião se apresentasse, se cuidassem de reeditar a iniciativa de Antônio A. de Souza e Silva, diretor de O Malho, aperfeiçoando o mais possível as técnicas de aferição quanto às potencialidades eleitorais dos escritores dispostos a lutar por uma vaga na Casa de Machado de Assis. Levando-se em conta que toda Academia tem algo de clube em que os sócios se reúnem na expectativa de um agradável convívio, e que o eleito não pode ser nunca mais excluído, seria recomendável — inclusive para a orientação dos votantes desavisados — que os jornais e revistas publicassem perfis dos candidatos, não só tratando de suas qualidades literárias e obra editada, mas também com dados sobre o temperamento e a personalidade de cada um. Esse procedimento ajudaria, e muito, a prevenir a entrada na ABL de escritor ou notável de difícil trato, capaz de incomodar, seja física, verbalmente, ou por escrito, seus futuros companheiros no Petit Trianon. Creio que a volta de concursos como os promovidos pela revista O Malho animariam positivamente a nossa vida literária, mobilizando leitores e intelectuais, tornando ainda mais glamourosos a Academia Brasileira de Letras e os seus imortais.