De volta à senda da revolução
Voltamos ao ponto de partida: a reforma da Previdência vai porque tem de ir, resta saber se reduzida a um par de gambiarras
Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
Não acabou tão mal a semana que começou com o decreto que mandava saber a quem interessar pudesse que “fake news” passava a ser uma condição que podia ser monocraticamente atribuída a qualquer fato que dissesse respeito aos membros do STF, o que não apenas restabeleceria a censura e a pena de morte por garrote vil financeiro contra jornalistas e empresas jornalísticas que não respeitassem as “Ordenações Toffolinas”, como, pior ainda, poria o STF acima de Deus, como os reis da Antiguidade. Ainda bem que o resto do Brasil, inclusive o Oficial, que não anda lá com os pés tão firmemente plantados no chão ultimamente, ainda está voando bem mais baixo que o sr. Toffoli e seu menino de recados. Outra vez “under God”, agora só falta pôr o STF “under the law” para que o País volte a encontrar o seu limite e, a partir dele, reorganizar-se para seguir em direção ao menos da revolução democrática modelo século 18 que a minoria pragmática do governo Bolsonaro vem perseguindo.
Voltamos ao ponto de partida: a reforma da Previdência vai porque tem de ir, resta saber se reduzida a um par de gambiarras para comprimir os efeitos do passivo acumulado de “erros” (na verdade “acertos” dos bandidos contra os mocinhos), o que seria desperdiçar a longa caminhada desde 2013 que levou a dinastia lulista ao fim, ou se vai endereçar o futuro do Brasil confirmando o sistema de capitalização ─ o fim da privilegiatura ─ como porto de chegada. A esperança de que o Brasil possa considerar a hipótese de vir a ser mais que um quase continente em fainas para pagar os proventos da nobreza estatal ainda não morreu, portanto. Podemos voltar a pensar nos fundamentos, sem a alteração dos quais não iremos a lugar nenhum.
Com o presidente da República sempre fiel à sua disposição de fazer mais concessões às reivindicações de China e Dedeco, dos caminhoneiros, que às de Paulo Guedes, do Brasil, a Petrobras, outra vez cheia de si, ensaia a reação contra o fim do monopólio do gás e os ministérios da Ciência e Tecnologia, da Agricultura, das Minas e Energia, da Infraestrutura e todos os outros rabos do governo com uma estatal para chamar de sua organizam abertamente a resistência contra as privatizações. Com o mercado a ponto de abandonar de vez a esperança de que o sonho de Paulo Guedes seja aqui, uma trégua foi estabelecida em torno do velho padrão “o que é que dá para fazer com a febre, excluída a única solução que cura a doença”.
A democracia 4.0, da virada do século 19 para o 20, uma etapa com repercussões revolucionárias muito mais profundas que as desencadeadas pela muito mais festejada democracia 3.0, cujo marco inicial foi o “We the People” da Constituição americana de 1788, entrou em cena como uma revolta popular contra o poder dos monopólios estruturados pelos “robber barons”, os Odebrechts e “ésleys” lá deles, em torno da novidade da “ferroviarização” da economia norte-americana. É claro que lá jamais se cogitou da hipótese suicida de entregar a quem já controla as Forças Armadas monopólio algum, muito menos sobre insumos básicos de toda a economia. Mas em menos de cem anos em vigor, a Constituição, com a divisão dos Poderes do Estado e toda a parafernália dos “checks and balances”, se tinha provado impotente para lidar com a súbita transformação de uma sociedade agrária numa sociedade industrial urbana totalmente desprotegida, do ponto de vista institucional, contra a mistura explosiva dos efeitos da descoberta dos ganhos de escala resultantes das fusões e aquisições de empresas que confirmavam a concentração da propriedade como uma tendência inevitável da economia moderna e a blindagem de políticos corruptos no mínimo durante os quatro anos de duração dos seus mandatos.
No duro debate que se seguiu, com todas as partes alegando a “defesa de princípios” para não alterar o status quo, Theodore Roosevelt chegou à síntese estruturada em cima da consideração de que o direito à propriedade privada não foi instituído para recompensar o amor às riquezas naturais ou ao capital, mas como um instrumento para o progresso da civilização e o engrandecimento do homem ao promover a igualdade de oportunidade pela garantia dada a todos de acesso ao produto do seu esforço individual. A partir dela ficou liberado o raciocínio de que, quando estiver claro o conflito entre o direito de propriedade e os direitos humanos, estes devem ter a primazia, desde que se não perdesse de vista a constatação pragmática de que, para além do blá-blá-blá, os homens exercem a sua liberdade é na sua condição de produtores e consumidores que podem escolher seus patrões e seus fornecedores, sem a qual nenhum outro “direito” pode ser garantido, do que decorre que o Estado democrático só pode intervir na economia para aumentar, jamais para reduzir a competição.
Era preciso, portanto, estabelecer firmemente a soberania do consumidor. Como o gigantismo dos monopólios dos “robber barons” não era só resultado de competência, mas também da corrupção e da compra de proteção e vantagens indevidas a políticos corruptos, a bandeira geral do movimento foi a da guerra contra o privilégio. Dada a diretriz moral, restava o problema de como transformá-la em ação. O instrumento encontrado foi a instituição, por cima de todas as outras forças atuando sobre a ordem institucional, da soberania absoluta do eleitor. O alvo inicial de Theodore Roosevelt, o vice que a sorte pôs no poder nos primeiros dias do mandato de William McKinley, assassinado, era o direito ao referendo popular de sentenças judiciais que revogassem reformas aprovadas pelos legisladores eleitos pelo povo. Mas para conseguir a adesão do Partido Progressista, ele aderiu às bandeiras da retomada de mandatos (recall), das leis de iniciativa popular e do referendo das leis de iniciativa dos legislativos, e acertou redondamente no “errado”. Roubou a bandeira dos socialistas americanos, pôs o povo de fato no poder pela primeira vez na história do mundo, e mudou para sempre a humanidade inteira de prateleira.