Marcos Troyjo
Já se sabe que esta é uma semana de grandes atribulações no Reino Unido. A primeira-ministra, Theresa May, recebeu pedidos de demissão de dois ministros de elevada importância.
Primeiro foi-se David Davis, encarregado diretamente do ‘brexit’ — a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) — opção escolhida pelos britânicos na consulta popular de 2016. Seguiu-o Boris Johnson, ex-prefeito de Londres que desde o início do governo May ocupava a pasta de Relações Exteriores.
A gota d’água teria sido derramada na última sexta-feira (6) durante reunião do gabinete de May em Chequers, a casa de campo dos primeiros-ministros britânicos. A menos de 300 dias da data-limite para o divórcio Londres-Bruxelas, as negociações sobre os detalhes da separação estão estagnadas.
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, recentemente classificou a “bagunça” causada pelo ‘brexit’ como o maior problema já experimentado nas relações Reino Unido-UE.
May deseja descongestionar as conversações e fazer com que a perda do status britânico de membro da UE seja automaticamente sucedida por uma gama de acordos de comércio, investimentos e serviços financeiros.
Isso permitiria a Londres continuar a desfrutar de acesso privilegiado ao mercado europeu (que, em seu conjunto, representa o maior PIB do mundo) e oferecer à City a chance de reter sua dimensão como epicentro financeiro da Europa e todo o mundo.
A primeira-ministra, que antes da decisão do plebiscito era contrária a Londres dizer adeus à UE, perdeu sete ministros nos últimos nove meses. May é acusada por seus opositores de desejar um processo suave de divórcio com o bloco, o tal de “soft brexit”.
O principal pilar dessa abordagem seria uma área de livre-comércio envolvendo Reino Unido e Europa, que May chegou a anunciar na última sexta como posição consensual de seu governo.
Claro, as demissões de Davis e Johnson mostram que o consenso não existia — e agora há pelo menos a noção de que os novos titulares das pastas do “brexit” e do Exterior cerram fileiras com a primeira-ministra. Há portanto a tese de que May, em vez de enfraquecida, passa a contar com um governo mais coeso.
Nesse aspecto, uma das principais fronteiras entre o “soft brexit” e sua versão mais dura — que almeja maior espaço de manobra discricionária para os britânicos — é justamente a obrigação de cumprir regras (e ter de se submeter a suas interpretações) formuladas em outros países ou jurisdições comunitárias.
O intuito dos que defendem o “hard brexit”, por exemplo, é evitar — mesmo no âmbito de um tratado Reino Unido-UE — que a Corte Europeia de Justiça exerça projeção sobre contenciosos comerciais envolvendo os britânicos.
Nesse contexto, parece que os defensores de um “brexit” mais severo desconhecem o chamado “trilema político da economia mundial”, concebido pelo economista Dani Rodrik, professor da Universidade Harvard. Sua hipótese é que um dado país tem três dimensões a considerar. Podem-se combinar 2 das 3 da forma que se desejar, porém jamais as três juntas.
Numa esfera, a integração econômica profunda, com o fluxo desimpedido de bens, serviços, capitais e gente. E, óbvio, regras comuns a adotar. Noutra, o Estado-nação e sua desejada soberania e normas próprias normas. Numa terceira, a democracia.
Ao se eleger o Estado-nação, os ganhos de eficiência da globalização ficam mais distantes. Ao se optar por mais globalização, eleitores restringem o espaço de manobra do Estado-nação. Ao tentar conciliar a primeira e segunda esferas em caráter estratégico — como supostamente faz a China — suprime-se o componente democrático.
Alguém deveria dizer aos britânicos que não há como fazer acordos comercias — com a UE ou quem quer que seja— sem perda de parte de sua “independência”. Aliás, por definição, acordos conduzem a uma maior “interdependência”.
Ademais, no caso europeu, para além das considerações estritamente comerciais, seria imprudente da parte de Bruxelas permitir a Londres gozar de privilégios de uma zona de livre-comércio como se os britânicos ainda fossem membros da UE.
Do ponto de vista dos interesses geopolíticos comunitários, isso apenas convidaria a um desmantelamento da UE, incentivando outros sócios a trilhar o mesmo caminho britânico.
Vamos supor que os britânicos pós-“brexit” desejem aprofundar conversações com a CPTPP (sigla em inglês para Acordo Abrangente e Progressivo para uma Parceria Transpacífico), o chamado “TPP light” negociado por 11 países da Ásia-Pacífico após os EUA de Trump abandonarem o tratado.
A propósito, este é um caso concreto, pois os britânicos anunciaram formalmente em janeiro deste ano o desejo de negociar seu ingresso na CPTPP.
Ora, para que essas tratativas avancem, Londres terá de se conformar com dispositivos e padrões comuns sobre o funcionamento de empresas estatais, compras governamentais, legislação ambiental ou trabalhista que compõem as balizas da CPTPP. Não há no mundo contemporâneo, acordos comerciais “não vinculantes”.
Em uma ou outra medida, é na modulação da interdependência que os países precisam calibrar seus interesses nacionais.
Nossa experiência no Mercosul bem exemplifica o ponto. Se o Brasil desejar mais autonomia em movimentar suas tarifas alfandegárias, terá de reformar o Mercosul (para que deixe de ser uma união aduaneira e se reconfigure como área de livre-comércio) ou então deixá-lo. A alternativa é sentar com os sócios e negociar oscilações e exceções da TEC (a Tarifa Externa Comum).
Essa dinâmica do “brexit” mostra como são complexas as equações envolvendo soberania e interdependência.
Quando optaram por um lado, talvez os britânicos não se dessem conta de que é impossível comer o bolo e guardar o bolo.