José Nêumanne (publicado no Blog do Nêumanne)
Incapaz de resolver, a 40 dias do crime, a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que abalou a imagem do Brasil quanto a direitos humanos no mundo, a intervenção militar e meia-boca no Rio resolveu, de forma arbitrária e atrabiliária, atacar quem presume serem, genericamente, seus mandantes. Agentes do Estado invadiram um baile na Zona Oeste da cidade e saíram de lá com 159 presos. Feita a triagem na delegacia, a ineficiente, inescrupulosa e brutal polícia fluminense não tinha indício algum de culpa de ninguém. Uma ordem judicial soltou o artista de circo Pablo Dias Bessa Martins, com passagem marcada para a Suécia, onde mora em oito meses do ano. Os outros, não!
A esse respeito, o ministro dito extraordinário (epa!) de Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou na sexta-feira 20 de abril que, apesar de 139 dos 159 presos na operação contra a milícia da Zona Oeste do Rio não terem antecedentes criminais, isso não significa que eles possam ser liberados. “Essas pessoas têm que explicar o que estavam fazendo lá, numa festa de milícia, numa festa de bandido”, declarou, após a posse do superintendente da Polícia Federal (PF) do Rio, Ricardo Saadi. Segundo Jungmann, não houve exagero, e sim “zelo” nas prisões feitas na operação. Ele quer ser vice de Bolsonaro?
Mais recentemente, o ministro não resistiu a mergulhar no mar de suspeitas da participação dos milicianos no crime. Quem quer que esteja minimamente inteirado das práticas da bandidagem, que tem prosperado no Rio desde que o caudilho Leonel Brizola proibiu sua polícia de subir os morros “para não bater no povo” (“os meninos do tráfico, coitadinhos”), sempre soube que só os novos reis do crime no Rio podiam ser os mandantes do brutal atentado. A coceira da sedução pela luz de coxia o levou a proclamar o óbvio com a autoridade de um dr. Watson dos mangues do Capiberibe. Mais uma vez, antes que o sol se pusesse apelou para o mantra da incompreensão, jurando de mãos postas que não era bem assim, muito antes pelo contrário…
No caso recente do Rio, a prisão em massa ocorreu no sábado 7 de abril, que serve de denominação para uma rua central da maior cidade do País por ser a data da abdicação do herói da independência, dom Pedro I, do trono imperial. Provavelmente os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli estavam em oração pelo bem-estar do novo imperador, dom Lula Único. E perderam uma grande oportunidade de mostrar seu zelo e sua comiseração pelos brasileiros vitimados pelo elitismo dos comunistas nada humanistas da terra de frei Caneca e da Confederação do Equador. Mercê das benemerências do compadre Gilmar, Barata, o rei dos ônibus, não frequenta mais as celas infectas do inferno prisional tupiniquim. E Sérgio Cabral voltou do degredo de Curitiba para uma prisão pertinho de casa.
O calendário às vezes é cruel. Dois dias antes de 21 de abril, “dois meses depois do carnaval”, lembra o samba, comemora-se o índio, habitante original destas plagas abandonadas por Deus, um filho que anda meio ausente delas. Em meus tempos de grupo escolar, era o Dia do Soldado. Hoje soldados não têm mais vez, só oficiais de academia podem ser celebrados, e virou o Dia do Exército. O comandante dessa Força, até há bem pouco tempo subordinado de Jungmann, e ainda hoje superior dos generais Braga Netto, interventor federal na Segurança do Rio, e do secretário estadual da área, Richard Nunes, resolveu dar seu palpite sobre o panorama. Como tal, e até porque deve acompanhar notícias em rádio, jornal e televisão, ele, na certa, foi informado da lambança do baile de milicianos (aliás, duas semanas depois da festa e da prisão coletiva tal acusação não foi devidamente comprovada). E é pouco provável que não tenha formado uma convicção a respeito.
Se formou, contudo, não a manifestou na segunda nota oficial que emanou de seu posto de vigia no alto do comando da mais armada das Forças. Às vésperas do julgamento de el-rey dom Lula Único, ele já havia avisado que estava de prontidão, zelando pela Constituição da República, como manda a própria. E no dia que celebra o Exército, o oficial com sobrenome de sertanista voltou a dar seu recado numa sui generis ordem do dia.
“Não podemos ficar indiferentes aos mais de 60 mil homicídios por ano”, advertiu, com todas as razões do mundo, de vez que ninguém poderia ficar. E continuou: “À banalização da corrupção, à impunidade, à insegurança ligada ao crescimento do crime organizado”. De fato, não há o que opor. O cidadão comum, sem farda, condecorações nem alabardas, até se comove com essa lembrança generosa do poderoso homem do governo. “E à ideologização dos problemas nacionais.” Aí a cobra começa a fumar, pois não consta dos deveres constitucionais das instituições fardadas fiscalização ideológica. Mesmo assim, ainda conforme o general, “são essas as reais ameaças à nossa democracia e contra as quais precisamos nos unir efetivamente, para que não retardem o desenvolvimento e prejudiquem a estabilidade”. Economia também não é o forte sequer de encarregados de intendência nos quartéis. “O momento requer equilíbrio, conciliação, respeito, ponderação e muito trabalho”, pregou o comandante. E daí, e daí?
Com as devidas vênias e continências, urge lembrar ao signatário da nota que o Exército poderia prestar grande serviço à Pátria se mandasse devolver os pobretões obrigados a provar inocência a seus lares. Até para mostrar que as gloriosas Forças Armadas nacionais discordam dessa cruel adaptação da velha ordem de Artur Bernardes: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei”. Aos pobres, presunção de culpa e prisão sem pena.