Augusto Nunes
Descobri num certo crepúsculo que menos de 15 centímetros me haviam separado, durante quase vinte anos, da felicidade absoluta. Ao longo dessa eternidade, fora proibido pela estatura de conhecer o orgasmo do basquete: enterrar uma bola na cesta com as duas mãos, proeza virtualmente inalcançável para quem mede, como no meu caso, 1m86. Até que, num inesquecível fim de tarde, sozinho numa quadra, topei com uma tabela adaptada para equipes infantis, meio metro abaixo da altitude oficial. Então, ao longo de 40 minutos fantásticos, eu soube o que é ser Michel Jordan. Bolas de chuá, jumpings impecáveis, bandejas acrobáticas, passes picados ─ esses e outros prazeres eu pudera saboreá-los como competente armador nas quadras da Araraquarense. Mas faltava a enterrada.
Desde aqueles momentos de sonho, virei feroz partidário de uma tese do cartunista Ziraldo: os jogadores de basquete deveriam ser distribuídos, como os lutadores de boxe, por categorias distintas. No mundo dos ringues, peso-pesado é uma coisa, peso-mosca é outra ─ circunstância que permitiu a um Eder Jofre, por exemplo, entrar para a história sem ter de trocar ganchos no fígado, diretos no queixo e devastadores uppercuts com um Mohammad Ali. A sugestão de Ziraldo conduziria à criação de categorias separadas para jogadores com 1m50 a 1m60, com 1m60 a 1m70 e assim por diante. É uma ideia que passo de graça ao cartolas do basquete.
Passei a endossá-la com especial entusiasmo ao ver de perto Michael Jordan, o magnífico ala do Chicago Bulls ─ experiência francamente desanimadora para um antigo craque do time de basquete do Instituto de Educação 9 de Julho. Conheci a fera em 1984, durante a Olimpíada de Los Angeles: à minha frente, erguia-se um armário com quase 2 metros de altura. Suponhamos que a natureza me tivesse dotado de todos os atributos que fazem um atleta muito singular. Como neutralizar a abissal centimetragem que nos separava (e lastimavelmente, continua a separar)?
A inexistência desses abismos físicos figura entre os muitos encantos que fazem do futebol o esporte das multidões. Não há tais abismos a separar os artistas entre si, como também não existem distâncias do gênero entre os artistas em campo e as plateias nas arquibancadas. O peso e a altura não configuraram requisitos essenciais para a identificação de um craque, conforme têm atestado, desde que a primeira bola rolou num gramado, esplêndidas exibições oferecidas por gênios cujos biotipos decididamente recomendariam ─ em tese ─ sua imediata transferência para outras profissões. A silhueta do grande Maradona, por exemplo, perfeita para ornamentar o balão de algum açougue no subúrbio de Buenos Aires, convida ao sonho os que se acham gordos demais para a glória ─ como antes dele haviam sido convidados ao sonho pelo perfil do grande Pagão os que para a glória se achavam magros demais.
E Garrincha? Ele viera de um miserável grotão do Brasil, parecia lesado pela escassez de neurônios. Tinha ambas as pernas arqueadas para a direita, circunstância que fazia do seu andar um apelo quase irresistível à pronta intervenção de ortopedistas. Pois esse anjo torto operaria, além do milagre do equilíbrio, a improvável conjugação do drama e da comédia sobre um par de chuteiras, em espetáculos que o transformariam no maior de todos os solistas. Ao menos em tese, o mundo mágico dos estádios é acessível a gordos e magros, ricos e miseráveis, altos e baixos. Está, enfim, ao alcance do povo brasileiro.
Não é assim no basquete, tampouco no vôlei e em outros esportes hoje restritos a atletas que alcançam altitudes sequer sonhadas pelo brasileiro padrão. Talvez seja o caso de acrescentar à Declaração dos Direitos do Homem um artigo decretando que todos têm o direito de ser feliz independentemente de centimetragens. Milhões de seres humanos descobrirão que a felicidade é uma enterrada de costas ─ com as duas mãos.