Publicado no Globo deste domingo
DORRIT HARAZIM
Não é preciso ter dado aulas de Direito Constitucional em Harvard nem ter recebido o Prêmio Nobel da Paz ou ocupar o cargo de presidente dos Estados Unidos da América para saber que a troca de governo que derrubou o presidente egípcio Mohamed Mursi no início de julho foi um golpe militar. Barack Obama, com tantas credenciais, sabia.
Sabia, mas preferiu não saber. E perdeu a chance de fazer então o que talvez venha a ser compelido a fazer algum dia: cortar a ajuda militar anual de US$ 1,3 bilhão que os EUA fornecem às Forças Armadas egípcias desde 1979, para garantir a defesa de Israel. Pressionado pelas imagens dos mais de 600 cadáveres recolhidos nas ruas do Cairo após a matança desta quarta-feira, Obama anunciou apenas a suspensão dos exercícios militares conjuntos com o Egito, programados para setembro. Para muitos, foi muito pouco e veio tarde.
O contorcionismo verbal de Obama para não chamar o golpe de golpe, e neste caso ser obrigado por lei a suspender a ajuda, persistiu mesmo depois da fuzilaria. “Sabemos que muitos egípcios, milhões de egípcios, talvez mesmo uma maioria de egípcios pediam uma mudança de curso”, comentou o presidente ao lamentar as mortes.
A convicção de que o cordão umbilical bilionário com o Cairo é vital aos interesses americanos se baseia na suposição de que ele permite aos EUA manter sua influência na região e exercer um papel decisivo nos rumos tomados pelos líderes do Egito. Só que tudo na evolução do golpe liderado pelo general Abel Fattah al-Sisi aponta em direção contrária.
Se a derrubada do caótico governo de Mohamed Mursi teve pontos de interesse comum para os militares egípcios e o governo americano — livraram-se da indigesta Irmandade Muçulmana no poder —, é possível que Washington tenha pouca serventia para os generais do Cairo agora que o golpe adquiriu dinâmica própria. O influxo de US$ 12 bilhões que a Arábia Saudita e os emirados do Golfo se apressaram a oferecer aos golpistas também empalidece bastante o poder de barganha americano.
Enquanto isso, é bom não esquecer, o primeiro presidente eleito do Egito continua preso e incomunicável em algum lugar do país.
O dilema de Washington tem a ver com o que a eterna voz dissidente de Noam Chomsky, professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT, chama de “Síndrome do planeta perdido”. Ou seja, a difícil transição dos Estados Unidos para um mundo mais diversificado, mais salpicado de centros de poder.
Afinal, não faz tanto tempo assim que o país se encontrava no ápice de seu poderio, ao término da Segunda Guerra. Detinha a metade das riquezas mundiais e todos os seus competidores estavam ou arruinados ou destroçados pelo conflito. Essa posição de rara invulnerabilidade permitiu aos americanos desenvolver uma política de liderança mundial alicerçada em bases concretas. Apenas o império soviético tinha estatura de inimigo oficial.
Desde a ocorrência do primeiro desarranjo neste mapa hegemônico, porém — a arrancada solitária da China, em 1949 —, os Estados Unidos têm dificuldades de se acomodar à perda de influência.
Como observa Chomsky, que tem ouvido duplamente aguçado para o significado de palavras, o Departamento de Estado até hoje se refere ao episódio como “a perda da China”. E já transcorreu mais de meio século. “Ora”, diz ele, “você só pode perder o que você considera ser seu. O conceito ainda continua em vigor, baseado na premissa de que qualquer coisa que enfraqueça nosso controle é uma perda que devemos nos empenhar em recuperar. É um tipo de paranoia: se você não tem tudo, é um desastre. Só se fala em declínio da América. A capa de uma edição recente da Foreign Affairs, a principal publicação do establishment nacional, perguntava: ‘A América acabou?’”
Longe disso. Este pode ser o momento para Barack Obama reatar a política americana com um elo do qual ela tem se desgarrado. Sabidamente, o atual ocupante da Casa Branca se notabilizou por perseguir uma diplomacia que procura brechas para estabelecer pontes com todos os regimes possíveis, por mais ditatoriais que sejam. É a chamada diplomacia “consequencial”, da busca de resultados, em oposição a arroubos de indignação.
No dia seguinte ao massacre de quarta-feira, o escritor e jornalista americano James Traub engatou nesta linha de raciocínio para escrever um artigo. O texto, publicado no site da revista Foreign Policy, logo se tornou viral. Ele termina assim:
“Eu gostaria de dizer que suspender a ajuda militar ao Egito agora é do interesse nacional dos Estados Unidos. Mas talvez não seja. Então digo que se trata de uma questão de autorrespeito nacional. Uma democracia precisa ser capaz de se olhar no espelho e aceitar o que vê, mesmo que não goste.”