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Augusto Nunes

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‘Paradoxo’, por Roberto Damatta

Publicado no Globo desta quarta-feira ROBERTO DAMATTA Quando cheguei em Harvard em 1963, um jovem instrutor que tinha interesse num país obscuro e confuso chamado Brasil teve a gentileza de me mostrar a universidade. Aqui morou Agassiz, ali Galbraith, acolá Talcott Parsons, indicava meu anfitrião. Vi o Peabody Museum, onde estudei, e finalmente, como uma […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h10 - Publicado em 16 out 2013, 18h12

Publicado no Globo desta quarta-feira

ROBERTO DAMATTA

Quando cheguei em Harvard em 1963, um jovem instrutor que tinha interesse num país obscuro e confuso chamado Brasil teve a gentileza de me mostrar a universidade. Aqui morou Agassiz, ali Galbraith, acolá Talcott Parsons, indicava meu anfitrião. Vi o Peabody Museum, onde estudei, e finalmente, como uma apoteose, fui levado à maior biblioteca universitária do planeta: a Widener Library, com seus 30 mil metros quadrados e seus 3 milhões de livros, que, mudos e alinhavados em imensas prateleiras, formam um labirinto de 92 quilômetros. Essa é apenas uma parte dos mais de 16 milhões de volumes do sistema de bibliotecas da universidade, explicou meu generoso guia. Só fiquei tão impressionado quando fiz minha primeira comunhão, falei com Lévi-Strauss e entrei na aldeia dos índios Gaviões pela primeira vez nos idos de 1961. Naquela época, era o leitor quem localizava o livro. Na Widener encontrei toda a obra de Machado de Assis e uma coleção completa dos Boletins do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que usei na minha tese de doutoramento sobre a organização social dos índios Apinayé.

No meio da visita, afastei-me do meu guia por alguns segundos, o suficiente para me perder em meio às estantes. Encontrando-o um tanto aflito um pouco depois, fui advertido. “Tome cuidado. Um aluno ficou dois dias perdido aqui dentro e foi encontrado por acaso pela mais antiga bibliotecária, uma certa Miss Page, cujo fantasma, dizem, especializou-se em resgatar leitores cuja vida intelectual os leva a se perderem em meio aos livros.” Sorri com essa história semelhante a um conto de Borges.

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Todos sabem que os livros, os princípios, os mandamentos e todas as nobres receitas podem ser fontes de desvios e loucuras. Eles são escritos para iluminar, mas em certos momentos tornam-se obstáculos. Ficar perdido numa biblioteca não seria um sinal de submergir nas ideias que saem como vespas ou borboletas do seus livros? Eis um paradoxo.

A primeira vez que ouvi a palavra “paradoxo” foi pela boca de meu tio Sílvio no telefone. Ele fazia uma complicada ligação interurbana e encantou-se pela voz da telefonista. Como queria localizar um amigo, ele disse perto de um menino curioso com uma memória literária: “Mas isso não é um paradoxo? Estou procurando um amigo e encontro uma bela voz de mulher!” Ouvi a palavra pelo menos quatro ou cinco vezes naquele telefonema de alguns minutos, o qual terminou num encontro entre meu tio e a operadora.

Aprendi, antes de ter lido o famoso livro do filosofo de Oxford, John L. Austin, que as palavras também faziam coisas. Dias depois, soube que a telefonista era feia e que o encontro fora, ele próprio, um paradoxo!

Nada mais paradoxal do que os arautos do impossível, mas poeticamente utópico, desafiador e corajoso ─ “É proibido proibir” ─ proibirem biografias. Quem vive do público e ganha do povo a simpatia que endeusa naquilo que chamamos de “sucesso”, não pode impedir que suas vidas sejam lidas de fora para dentro. Nisso, o contraste com os Estados Unidos é, mais uma vez, flagrante. No Brasil abundam as “memórias” nas quais o ponto de vista é o do sujeito: a visão de dentro para fora. Nos Estados Unidos, predominam as biografias ─ essas vidas contadas de fora para dentro, geralmente decepcionantes para a autoimagem que os ricos e famosos têm de si mesmos. Fiquei chocado com as novas biografias de Thomas Jefferson ao saber que esse pilar do igualitarismo teve como amante uma menor de idade, negra, escrava e criada de suas filhas.

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Todas as vidas humanas contêm paradoxos. Como aprendemos com Caetano Veloso e talvez com Schopenhauer, “de perto ninguém é normal”. Seria isso um bom argumento para tornar a intimidade pessoal mais sagrada do que a liberdade de escrever livremente sobre o outro ─ quem quer que ele seja? Quem vale mais? A vida pessoal de quem deve tudo ao público, ou a liberdade de escrever? Os gênios morrem, mas a obra fica. Faz alguma diferença saber que Kafka e Benjamin Franklin eram superdesorganizados e que Cole Porter era gay? O mundo está repleto de gente desorganizada e de gays que jamais serão Kafkas, Franklins ou Porters!

Eu moro em Niterói e já estou imaginando como vamos nos ligar à Cidade Maravilhosa quando o viaduto com vigas de aço especial, feitas para durar séculos, for derrubado. O sumiço de parte dessas vigas e as três horas que levo de minha casa em Piratininga à PUC de carro arrefecem o meu entusiasmo pelo progresso. Um dia, diz meu lado malévolo, vão roubar a Ponte Rio-Niterói ou o Palácio do Alvorada. Teremos um Porto Maravilha, sem dúvida, mas paradoxalmente banhado pelas águas imundas da imensa sentina que hoje é a Baía de Guanabara.

Consolo-me com Vinicius de Moraes na sua poesia musicada que mais me conforta e comove:

“Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez
Ai pergunto a Deus: escute amigo,
se foi prá desfazer por que que fez?
Mas não tem nada não
Tenho meu violão…”

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