A raiz da nossa polarização
A tribo só quer saber se o chefe será capaz de trazer a vitória
Eleições podem ser lidas como disputas tribais. Com uma característica: em vez de tribos inteiras entrarem em guerra, seus líderes enfrentam-se num duelo mortal, poupando da morte os liderados do perdedor. Aos quais fica reservado o “benefício” da escravidão, em modalidades mais ou menos explícitas. Ou, numa hipótese benigna, lhes é oferecida a paz honrosa. Este segundo caso costuma frequentar mesmo é o universo da ficção.
Em eleições, a disputa final entre os chefes tribais acontece nas urnas. E os debates? Acabaram institucionalizando-se como lutas preliminares, para medir dois atributos essenciais: 1) a capacidade de manter o equilíbrio e reagir de modo eficaz sob pressão; e 2) a capacidade de fazer o integrante da tribo sentir orgulho e confiança quando avalia a força do chefe. E as duas variáveis estão longe de ser independentes. Em resumo, a tribo só quer saber se o chefe será capaz de trazer a vitória.
Daí a platitude de reclamar que “infelizmente, o debate não trouxe propostas”. Quem quiser propostas deve procurar na internet ou nos comitês dos candidatos os tradicionais documentos redigidos para esse fim, no mais das vezes repletos de intenções que não se realizarão, pois infelizmente as circunstâncias impedirão. Frustração que será digerida pelos integrantes da tribo conforme contemplados com o butim produto da vitória.
Uma consequência conhecida é a tradicional pouca disposição de largar o bem-bom só porque o programa não foi aplicado. Pois o problema só passa a incomodar quando a não aplicação do programa traz riscos à perpetuação da tribo nos espaços de poder.
“Para a ‘frente ampla’, não basta derrotar Bolsonaro. A missão é recolocar o gênio dentro da garrafa”
Voltando aos debates, está claro que os dois finalistas da corrida presidencial saíram do primeiro duelo na Band com sua liderança preservada na tribo. Enfrentaram atribulações, mas foram capazes de criar situações incômodas para o adversário. Vamos ver como será no próximo e decisivo encontro.
Um mistério: depois de tanto tempo para se preparar, é intrigante que Luiz Inácio Lula da Silva ainda não tenha uma resposta azeitada sobre a Lava-Jato, e Jair Bolsonaro tampouco tenha uma resposta azeitada sobre a Covid.
O futuro duelo final entre Lula e Bolsonaro neste 2022 está a merecer o batido qualificativo de “histórico”. A vitória do capitão em 2018 representou a “libertação” das massas de direita “escravizadas” desde 1985 pelos líderes da Nova República. Para essas massas, é intolerável imaginar a volta a um passado recente, quando se era governado por uma facção dos “nova-republicanos”, e a única opção era votar noutra facção do mesmo veio histórico.
Para a “frente ampla”, não basta derrotar Bolsonaro. A missão é recolocar o gênio dentro da garrafa, tanger as massas bolsonaristas de volta para o cercadinho. Removendo definitivamente o risco de abrir espaço para uma eventual futura nova liderança que reivindique o comando do campo derrotado pela Aliança Democrática quase quatro décadas atrás.
Essa é a essência da nossa “polarização”.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812