O poeta, romancista e compositor Sjón é uma das estrelas da 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Em passagem pelo país, o islandês lança o livro Pela Boca da Baleia (Tusquets, 208 páginas, 26,60 reais), traduzido do islandês por Luciano Dutra. A obra narra o exílio de um velho curandeiro, Jónas Pálmason, em 1635. Apoiado em uma narrativa complexa, o livro esmiúça a vida de Pálmason, acusado de praticar feitiçaria e enviado a uma ilha distante, onde relembra traumas de sua trajetória.
Sigurjón Birgir Sigurdsson, ou apenas Sjón, também é bastante conhecido no cenário musical islandês por suas várias parcerias com a cantora Björk. Em 2001, foi indicado ao Oscar pelas músicas que compôs para a trilha sonora do filme Dançando no Escuro (2000), de Lars von Trier. Em Paraty, ele participa da mesa sobre literatura histórica com Alberto Mussa, no sábado (29). Confira o primeiro capítulo do livro Pela Boca da Baleia:
Tive que escafeder-me para este atol numa viagem sem volta… Meu lar agora é aqui… Na praia azul, esperam-me apenas tormentas e suplícios, porretes e difamação, pólvora e víboras com a virilha partida, de tal sorte que elas parecem ter dois pés que andam…
“1. Equinócio de Outono
Ele é de tamanho mediano… Os olhos situam-se próximo ao nariz, castanhos e o tempo todo brilhantes, rodeados por palidez… Tem um nariz relativamente comprido, largo e poderoso, um tantinho adunco na extremidade, escuro, porém mais claro em direção à base. Com o pescoço curto, é agitado e rechonchudo, de pés pequenos e pernas finas, tórax abaulado e abdômen volumoso… A cabeça é mais escura, castanho-acinzentada e desgrenhada no colarinho, da nuca ao topo… Veste um casaco bem justo, marrom cor de pedra, mas que no crepúsculo assume aqui e ali o tom violeta; usa meias claras, roupas de baixo de bolinhas… É insolente com o mesmo sexo, tagarela com o oposto… Dessa forma é descrito o pilrito-escuro, e dessa mesma forma sou descrito pelos outros… Mas já passei por muita coisa pior do que ser comparado a ti, pilritinho, pois somos produto das mesmas mãos criadoras, ambos tendo sido talhados no mesmo ferro: tu foste animado no quarto dia; eu, no sexto… E se fosse ao contrário? Se eu tivesse sido empurrado a este palco como um passarinho, a voar pelos céus, e tu nomeado o senhor do planeta Terra? Se assim fosse, um passarinho estaria agora sentado nesta pedra, contemplando pensativo um homem desplumado andando às margens da praia, borrando-se de medo de que o mar, ao afastar-se da terra, não voltasse nunca mais… Homem e passarinho, homem com coração de passarinho, passarinho com consciência de homem, passarinho com coração de homem e homem com consciência de passarinho… Em quase tudo somos parecidos… E por que razão não haveria de ser assim? Há não muito tempo, eu tinha os restos de um irmão teu, um pássaro mandrião, sobre a palma da minha mão, e com os dedos dessa mesma mão eu mexia naquela carcaça sem vida… Sob as penas do peito, toquei primeiro o esterno fraturado e depois a parte mole que aloja os rins e os intestinos… Enquanto examinava o bichinho, eu passava a outra mão pelo meu próprio torso, vivo… Foi durante a onda de calor, quando os dias quentes resolvem visitar a ilha de Bjarnarey, e me parecia fácil observar a mim mesmo, pois eu não vestia nada além de mim mesmo… Eu podia me dar ao luxo de ficar assim, já que estava sozinho e ninguém me veria ali. Ninguém a não ser o supremo Criador, que, no entanto, já conhece sua criação melhor do que a si mesmo… E não era difícil perceber a mão do Criador, pois meu corpo era talhado nos mesmos moldes que o daquele meu amigo emplumado… No entanto, apesar de nossos veículos serem tão incrivelmente semelhantes, nossas vidas são como as letras de dois escribas diferentes, que aprenderam com o mesmo livro de caligrafia e agora procuram copiar a mesma narrativa, estando um sentado na enseada de Ögur, nos fiordes ocidentais, e o outro nas colinas de Hólar, no vale de Hjaltadalur, ambos preocupados em ler o pergaminho correta e conscienciosamente… Mesmo assim, os mais eruditos são capazes de enxergar remates abruptos no “D” do escriba que trabalha ao abrigo dos tiranos e outros delicadamente curvos e alongados no “D” do escriba que trabalha sob a guarida dos dignitários de Deus, que lutam para escapar daqueles canalhas… Tu, passarinho, eras uma letra talhada com habilidade, num momento em que o sossego imperava na casa do Senhor, enquanto eu devo me conformar que minha feição tenha sido riscada ou rasurada no pergaminho justamente por detratores e inimigos: “Jónas é um patife, Jónas é um ladino e um preguiçoso, Jónas é um fanfarrão, Jónas é um mentiroso, Jónas é um lunático…”. Sim, assim sou pintado nos escritos caluniadores e nos falatórios maledicentes que antecedem minha chegada, aonde quer que eu vá… Digo isso porque, segundo os antigos de Jerusalém, toda a existência e seus habitantes têm como material o alfabeto do idioma do Senhor, usado por Ele quando enunciou o mundo, como se este fosse uma narrativa tão extensa que ninguém além d’Ele próprio conseguiria viver o suficiente para escutar na íntegra; e o desgraçado do ser humano agradece a cada instante de sua vida o privilégio de ouvir o fragmento dessa história que se refere a ele mesmo… Assim, criaturas diminutas como nós dois, Jónas e pilrito, são pouco mais de uma palavra da classe das palavras mais curtas, aquelas formadas por uma única sílaba: “ai”, “ei”, “ih”, “oh”, “ui”… Palavras que todos entendem, gritadas pelos descendentes de Adão – o Ser Atormentado – quando narram uma desgraça ou quando um deles quebra um dedo do pé… Mas por que razão ocorreu-me a letra “D”, não outra? O que significa o “D” na árvore alfabética de Abraão, filho de Salomão? De que ramo floresceu tal letra? Será o dálet? Um pássaro pousou ali e gorjeou na direção do sol da manhã? Ou era um homem de cabeça para baixo, pendurado numa corda que se enroscou naquele ramo? Aqui estou, cego e privado de livros… Tu saltitas aos pés das geleiras da montanha, junto às praias mais longínquas, e espetas o bico avermelhado nas algas do mar na areia cinzenta, grato pelo pedaço de terra que o Senhor te concedeu… Tirando a permanência no reino dos céus, nada é objeto de maior cobiça, e quase todos os humanos islandeses suplicam com o maior fervor para que exatamente assim possam organizar a vida; aqui nasceste, aqui buscas teu sustento, aqui hás de morrer… Em vida, dá gosto ver-te, pilrito, e não importa para onde sejas chamado após tua morte, ainda será possível maravilhar-se amiúde contigo após tua partida… Nosso convívio teve início há uns cinquenta e cinco anos, quando uma pena se desprendeu da asa do teu corpo sensível, foi soprada por sobre a beira da praia até o pântano e de lá para os campos, até alcançar as encostas, pousando aos pés do meu avô, Hákon, filho de Thormóður, filho de Salómon, construtor de navios. Ele tinha ido colher uva-do-monte com o menino Jónas e, para evitar que a criança se empanturrasse com as baguinhas, recitou para mim um poema instrutivo, o que costumava fazer apenas quando estávamos sozinhos… Naquele dia tocou-me ouvir o poema “O lírio”, do frade Eysteinn Ásgrímsson, e estávamos no trecho do poema em que eu sempre começava a rir, no qual é descrita a visita de Lúcifer ao malfadado rei no lenho sagrado… Eu contava então seis invernos de idade e sabia que aquelas minhas risadas eram não apenas tolice, mas também heresia… Assim que ele começava a declamar as primeiras palavras daquele glorioso poema, eu mal podia esperar até que ele recitasse: “gaguejar perante a cruz – que se dane!”. O medo de não me conter fazia aquela tolice ganhar ainda mais força na minha mente… É claro que não era culpa, nesse caso, da esplêndida história da libertação da humanidade nem do maravilhoso engenho poético do autor, mas da careta que meu avô fazia toda vez que ele pronunciava a palavra “gaguejar”. Ele flexionava ligeiramente a perna esquerda, de maneira que o ombro direito se erguesse e o outro abaixasse, ao mesmo tempo que franzia o cenho e um biquinho se formava quando a palavra “cruz” chegava-lhe aos lábios; isso tudo ocorria de forma inconsciente, e ele não tinha a menor ideia do que se passava… Era então que eu começava a rir… Nada me parecia mais absurdo que a ideia de o Filho do Homem achar o rosto do viperino Satã tão esquisito e carismático quanto a expressão do meu avô Hákon, naquela hora, para mim… Eu abaixava a cabeça e a segurava com ambas as mãos, mas as risadas escorriam-me descontroladas por entre os dedos, não menos rápidas do que uma multidão de diabinhos sairia de um saco… Ele parou de súbito e olhou o neto de cima a baixo… Naquele instante a pena do pilrito pousou bem em cima de seu pé… Ele disse:
— Me parece que tu terás uma ótima memória, Jónas…
O avô se apoiou nas muletas, de modo que ficamos da mesma altura, abaixou-se até o chão para pegar a pena, segurou-a por um instante entre os dedos e depois a colocou no meu cabelo, atrás da orelha direita:
— Agora temos que te ensinar como se lê um livro…
Aquela tua pena púrpura-acinzentada me serviu como guia pelas linhas dos livros durante todo o tempo que meu avô levou para me ensinar a ler os pergaminhos… E aquele encontro delicado entre a mão da criança e a pena marcava também a separação entre o menino e o passarinho… Apesar de a ponta da tua pena tocar o pergaminho enquanto eu titubeava de uma palavra a outra, nenhuma parte daquela sabedoria chegava a ti, mas se deixava absorver totalmente por minha memória infantil… Sim, até aqueles momentos em que eu me curvava sob o peso do conhecimento, nossa percepção tinha o início e o fim na mera existência carnal; na forma como a inteligência de ambos decifrava o clima e as águas… Ai, que eu nunca tivesse aprendido a ler! Ali começou o sujeito Jónas sua jornada de tormentos pela boca da baleia e pela terra da frivolidade, abrasado pelos prodígios do ocaso da Reforma, pelo queimar de suas santas cruzes e pela destruição de antigos alfarrábios, enquanto um pequeno frescor do dilúvio, ainda presente, impulsionava a inocência e a bênção da ignorância… Acredito, emplumadíssimo nabo da terra, que Nossa Senhora vele por ti com benevolência, tão logo Hélio se parta em milhares de sóis no alvorecer da Páscoa, sobre as asas que cobrem tua cabecinha ingênua, ou a lua venha a pratear a fina camada de neve sobre teu peito na véspera do Natal: recorda-te disso na euforia das marés altas, lembra-te disso no desespero das vazantes…
— Piu, piu…
É a resposta que recebo do baixio, quando o pilrito alça voo da pedra… Decola batendo afoitamente as asas curtas, a princípio rumo ao mar, mas não demora a voltar à praia e, naqueles ínfimos instantes em que meus olhos acompanham a ave em voo, enxergo a franja azul do continente… De outra forma, minha vista não alcançaria daqui, deste meu assento no topo da cidadela dourada… Não, procuro não voltar o nariz gelado naquela direção… Como essa visão perturba minha mente! É doloroso demais sentir o perfume da doçura e o fedor da rabugice de lá exalados ao mesmo tempo… Tive que escafeder-me para este atol numa viagem sem volta… Meu lar agora é aqui… Na praia azul, esperam-me apenas tormentas e suplícios, porretes e difamação, pólvora e víboras com a virilha partida, de tal sorte que elas parecem ter dois pés que andam…
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SALPICADO-DO-MAR: a menor espécie de pássaros denomina-se salpicado-do-mar, tendo um pouco menos de um terço do tamanho do pilrito; é mosqueada de preto e branco, por isso diz-se que a terra está “salpicada de neve” em determinados pontos. Alguns homens desenterram certa espécie de alga, com cerca de quatro a cinco braças sem contar as raízes, da qual um pequeno pássaro eclode de seu ovo, embora não se saiba se é o salpicado-do-mar ou outra espécie.”