Se David Lynch rejuvenescesse e resolvesse escrever um filme sobre internet, resultaria em “Cam“, a novidade da programação da Netflix. O roteiro, escrito pela ex-camgirl (aos desconectados: garotas que se exibem em lives em troca de pagamentos, normalmente em bitcoins) Isa Mazzei, é algo como se “Mulholland Drive” (“Cidades dos Sonhos”) fosse ambientada no glamour do Pornhub, em vez de em Hollywood.
A narrativa beira ao surrealismo. Porém, se não perder o fio da meada, tudo faz sentido. Trata-se de uma camgirl (interpretada pela ótima Madeline Brewer, a Janine de “The Handmaid’s Tale“) que, num belo dia, vê-se trocada por uma cópia de si, um dopplegänger, no site pornô no qual trabalha e fatura. Com o tempo, descobre-se que se trata de um cenário bem mais no estilo de “Cidades dos Sonhos” de Lynch.
A identidade real e a virtual da moça se confundem, como as nossas por vezes se misturam na vida para valer. Troque a camgirl por um usuário assíduo de Facebook, Instagram, Twitter ou YouTube, e a loucura na qual entra a protagonista se torna não só palatável, como verossímil, bem parte da vida contemporânea.
Reflete-se sobre a obsessão por seguir e ser seguido no mundo de redes sociais. Acerca de demonstrar felicidade e realização, a qualquer custo, em tuítes, instas, lives. Do vício em ver os outros e se mostrar para os outros. Da dependência crescente de gadgets de todos os tipos; smartphones, tablets e o que mais se inventar daqui para frente. De como a intensa rotina online nos faz esquecer das responsabilidades off-line. E, principalmente, de como a somatória disso tudo nos leva a traumas, depressões e a, muitas vezes, destruir relacionamentos reais com familiares e amigos.
“Cam” é uma aventura cheia de revelações e reviravoltas. Seria fácil soltar spoilers. Por isso, não darei mais detalhes do roteiro, em si, para não estragar o prazer de ser instigado.
Adianto, no entanto, que o fim cai como uma enorme provocação. É um daqueles filmes com os quais temos pesadelos diurnos. A história persegue. Àqueles que gostam de não apenas se divertir com o que se vê na black mirror da TV ou do computador, o aviso: pode ser que se lembre das desventuras da camgirl sempre que se notar por tempo demais no Facebook; compartilhando nudes ou fake news no WhatsApp; pulando de vídeo para vídeo no YouTube; ou mesmo ao acessar o Pornhub.
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A comparação do título, com Black Mirror, tem motivo. Para quem viu a série, será natural lembrar dos episódios mais memoráveis, das primeiras três temporadas, como o celebrado “Nosedive” (primeiro da terceira temporada).
Assim como, com “Cam”, resgata-se a força da retomada da ficção científica nestes anos de 2010 – que havia dado uns passos para trás com a última temporada do mesmo “Black Mirror” (tanto que a indústria hollywoodiana, incluindo aí o Netflix, estava mais apostando no “terror” como a linguagem para a década de 2020).
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