A teoria por trás do leão e das hienas de Bolsonaro
Teses da ciência da comunicação explicam a lógica da dinâmica por trás das respostas do presidente às atuais crises que ele enfrenta
Quem começa a ler este texto deve estar antenado com o cenário obscuro, nublado, digamos que enigmático, que tem rondado o presidente Jair Bolsonaro nos últimos dias. Na segunda-feira (28), o presidente compartilhou em seu Twitter um vídeo no qual se mostra como um leão cercado por hienas, sendo que estas representariam, basicamente, todas as instituições essenciais da democracia, mantenedoras de tal sistema – incluindo da máxima da liberdade de expressão, que leva ao conceito de que essas próprias instituições se abrem a críticas, quando estas não passam dos meros ataques autocráticos, ilegais e/ou obscurantistas. Ontem, o baque foi maior: o Jornal Nacional (JN), em reportagem admirável, revelou depoimento do porteiro do Vivendas da Barra, condomínio onde mora o governante e dois suspeitos da morte de Marielle Franco, que acabou por colocar em maior desconfiança a família Bolsonaro – caso o STF permita, esta pode passar a ser objeto, direto ou indireto, das investigações em curso. Neste espaço, analisarei não os casos em si, mas as reações do presidente nas redes sociais, seja ao se retratar como cercado por hienas, ou ao gravar vídeo acusando e ameaçando a Globo, dentre outros, após as revelações do JN.
Conscientemente ou não, Bolsonaro parece dominar – assim como Donald Trump; e Steve Bannon – técnicas modernas de comunicação via mídias sociais, que só recentemente foram decifradas por teóricos da comunicação. Pioneiro nos estudos das chamadas imagens técnicas – as produzidas por aparelhos como máquinas fotográficas, smartphones, tablets, YouTube, Twitter –, o filósofo checo Vilém Flusser define em seu clássico Filosofia da caixa preta que esses aparelhos são “conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de seus receptores”.
Morto ainda nos anos de 1990, esse pensador anteviu a dinâmica contemporânea das redes sociais, em muitos sentidos. Na frase dele, a destacada acima, exibe como, quando se entra em um Twitter ou um YouTube, operasse uma máquina previamente programada, com limites aos quais nos submetemos. E, mais do que isso, que se pode explorar como for as ferramentas, mas cujos efeitos (de posts, sejam textos ou vídeos de leões e hienas) nos receptores (os seguidores) seguem ainda imposições desenhadas pelos algoritmos desses sites e apps. Complicado? Explicarei de forma simples.
Flusser também elabora a ideia do “Aparelho-fera”. Em linhas gerais, o filósofo explica como, frente às imagens técnicas, a exemplo da extrapolação para o ambiente das redes sociais, os usuários se comportam como caçadores. Todavia, esses caçadores estão submetidos às regras do aparelho, este sendo, e por exemplo, a codificação dos algoritmos que regem Twitter, YouTube, Facebook etc. Por ter de se curvar a essas regras – noutras palavras, se alguém não concordar com os Termos de Serviço do Facebook, não poderá usá-lo –, o caçador se amalgama com o aparelho (o site, o app), tornando-se o “Aparelho-fera”.
A questão central é que as regras não se restringem aos Termos de Serviço. Mas, sim, a como foi construído todo o ambiente virtual das redes sociais. Ao que importa em relação às respostas de Bolsonaro às atuais situações que encara, essas plataformas seguem impulsos emocionais de seus usuários, dos “aparelhos-feras”. Foram criadas de forma a chamar a atenção. E é isso. O que mais chama atenção é mexer com os sentimentos primitivos, do amor descontrolado ao ódio extremo. Logo, para algo viralizar, repercutir, para se ganhar seguidores (ou eleitores) e curtidas, deve-se apelar a mensagens que manipulem as emoções à flor da pele.
Outro filósofo, este contemporâneo a nós, mergulhou no entendimento desse processo. Já me apoiei nas teses de Byung-chul han em textos deste blog (como neste e neste). Desta vez as usarei para melhorar a compreensão das reações de Bolsonaro, tanto com seu vídeo de leão contra hienas, como no em que, em vez de responder diretamente a desconfianças, ataca a mídia, a política etc., como forma de se esquivar. Em exemplos de táticas típicas (e, em certos aspectos, eficientes pelo ponto de vista manipulativo) de comunicação por meio de mídias sociais, que podem ser utilizadas por populistas virtuais representantes de quais ideologias forem – aliás, incluindo aí ainda uns coaches e alguns tipos dos chamados influenciadores digitais (mas não todos eles).
“É de se prever que a internet logo substituirá inteiramente o local de eleição. Assim, eleições e compras ocorreriam (…) na mesma tela, ou seja, na mesma esfera de consciência (…) não somos mais agentes ativos, não somos cidadãos, mas sim consumidores passivos”. A análise de Byung-chul han, detalhada no livro No Enxame, publicado no ano passado, estrutura com precisão a relação de indivíduos nas redes. Os “aparelhos-fera” estão em busca de posts da mesma maneira que procuram por itens em um shopping. Isso inclui os posts ideológicos, os posts de coaches, os posts de políticos. Logo, para atrair o público a essas mensagens, é preciso lidar não com cidadãos, mas com consumidores.
Contudo, a lógica é avessa ao conceito de democracia representativa, como também bem exibe Byung-chul han em seus livros (outras indicações de leitura: Sociedade do Cansaço e Sociedade da Transparência). Por quê?
Em uma democracia representativa, líderes políticos representam interesses de grupos conhecidos a todos, transparentes, explícitos. Sejam esses grupos “os empresários”, “o mercado”, sindicados, “os operários”, “a mídia”, “os caminhoneiros”, qual for. Assim se constrói uma democracia plena, onde, no ideal, haveria no Congresso líderes que batalhariam por todos da sociedade – mesmo que cada um lute pelos interesses de determinados segmentos.
Evidentemente, não há utopia e o balanço de poder jamais foi o ideal. A busca por ele, este balanço, porém, funciona e leva ao progresso da civilização. No entanto, as redes sociais não abraçam essa ideia. Explico.
Byung-chul han reflete sobre como no Twitter, no YouTube, no Facebook, indivíduos não procuram por grupos, não querem líderes que representem interesses coletivos, da sociedade. Como essas plataformas operam por meio da valorização dos sentimentos à flor da pele, busca-se a radicalização das emoções, o que leva à polarização de opiniões, à insensatez. Nos polos, em vez de se agruparem, as pessoas só querem saber de seus próprios interesses, do que lhes convém, do amor colossal ou do ódio abissal que destinam a determinados alvos.
Nesse contexto aparecem líderes que compreendem a nova dinâmica. Como Bolsonaro, Trump etc. O que eles fazem é agir como rainhas de um enxame de abelhas (daí o nome No Enxame, do livro do filósofo sul-coreano, radicado na Alemanha). Em vídeos, textos, memes, virais, apontam rivais, os “alvos”. E tanto faz qual é o rival. O importante é enervar o público, em direção aos alvos.
Daí surgem incoerências que, para a audiência, pouco importam. Pode-se uma hora se portar como autocrata, noutro como democrata; em um momento como reacionário, noutro se fingir ser liberal. Por quê? Pois, na prática, a rainha não representa um grupo. Ela não é parte da democracia representativa. A intenção se restringe a alimentar o ódio a todos, menos a si mesmo (aí, alimenta-se o amor radical, cego).
Recentemente, Olavo de Carvalho, youtuber que domina tal prática, demostrou essa habilidade de forma exemplar: em vídeo, disse que basicamente ele pode mentir à vontade, que não importa espalhar fake news, e que ninguém é apto a debater com ele (nem mesmo seus seguidores fiéis, como Nando Moura), pois só o próprio Olavo seria “o guru”, a rainha do enxame. Nisso, tentou guiar seu secto a odiar todos os outros, mas amá-lo, independentemente da realidade do mundo.
Convido-os a aplicar tais conceitos às reações de Bolsonaro, as de hoje, de ontem e de anteontem, mas também como forma de analisar comportamentos futuros. Diante da crítica, dos questionamentos, da saudável fiscalização, das instituições democráticas, o que fez o presidente?
Espalhou um vídeo no qual ele, o “aparelho-fera”, se portava como um leão acuado por hienas. Hienas, estas, que seriam justamente as instituições democráticas, às quais os algoritmos das redes ainda não se mostraram acostumados (digo ainda pois há saudáveis medidas recentes, tomadas por Facebook e YouTube, especialmente, que tentam transformar esse contexto, recodificando seus próprios organogramas).
Ou seja, a rainha Bolsonaro, o leão, direcionou o ódio das abelhas a seus alvos, as instituições. Por outro lado, ele insere um outro leão, no fim do vídeo, que chega para “salvá-lo”. Quem seria esse amigo leão? Os bolsonaristas de carteirinha, seus fãs. O que ele faz assim? Conclama o amor cego a ele mesmo, o leão, a rainha do enxame, enquanto continua a promover o ódio a todo o restante.
A praxe é seguida à risca, exatamente igual, no vídeo em que ele comenta as revelações do JN. Em vez de se apoiar em argumentos, na lógica, em qualquer fato, para tentar se defender, o que faz? A rainha novamente convoca o enxame, agora para atacar coordenadamente a instituição democrática que o cerca – a mídia, representada pela Globo. Isso além de ter feito o mesmo em relação a outros, como o governador do Rio.
Vale frisar: não só filósofos flagram os riscos que representam essa estratégia, diante da democracia representativa. Os próprios criadores das redes sociais apontam o perigo. Assim como escritores, sociólogos, políticos, religiosos, enfim, pensadores de diversos campos do conhecimento. Para quem gosta de séries de TV, há uma que resume bem esse receio, ou mesmo medo: Years and Years, transmitida pela HBO (sobre a qual já escrevi).
Em tempo: é curioso ainda apontar um detalhe no vídeo do leão e das hienas. Caso dois leões adultos, alfas, se encontrem na natureza, eles não vão só espantar hienas. Eles costumam guerrear entre si. O perdedor é expulso do bando, enquanto o vitorioso mata todos os filhotes do derrotado, escraviza as fêmeas, e no fim “negocia” seu território com as hienas. Isso, no entanto, não é mostrado, por exemplo, em O Rei Leão.
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