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A Origem dos Bytes

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Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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A ligação entre vacilos online de MC Gui, Preta Gil, Saulo Poncio…

A novela é a mesma: a celebridade faz uma bobagem nas redes, e o tribunal virtual cai em cima. O que explica esse círculo sistemático de indignação?

Por Filipe Vilicic Atualizado em 22 out 2019, 19h04 - Publicado em 22 out 2019, 17h59
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  • Fofocar sempre foi parte integrante da sociedade. Trata-se de algo tão intrínseco ao espírito primário de vizinhança que, digo mais, bem que poderia ter sido aprofundado em estudos de filósofos existencialistas como Ernst Cassirer. Todavia, o comportamento, em boa parte das vezes tóxico aos relacionamentos humanos, parece ter ganhado contornos remodelados na era das redes sociais. Isso porque os boatos, em um passado não tão remoto, viravam fofoca quando havia um vazamento de informações comprometedoras, ou algo assim. Hoje em dia, nada disso. São os próprios alvos da fofoca que se jogam às massas que formam a opinião pública, expondo os detalhes vergonhosos de suas privacidades. O que mudou?

    Para compor uma explicação, usarei de apoio alguns casos recentes de mexericos que tomaram as mídias sociais, seja no Instagram, no YouTube, no Facebook etc. Este texto, no entanto, não se trata de fofoca. Por isso, caso queira saber de detalhes dos casos de bisbilhotice dos perfis alheios, convido-o a buscar no Google pelos nomes envolvidos em cada história.

    Pensemos no que acabou de ocorrer com MC Gui. Confesso que não fazia ideia de quem se tratava esse cantor. Mesmo assim, quando hoje (22) acessei o Twitter, logo me deparei com uma penca de figuras detonando o nome. Vim a descobrir que MC Gui, que em nada tem espírito de MC “raiz”, compartilhou um vídeo no qual fazia bullying com uma menina estadunidense fantasiada como um personagem da Disney – e isso num dos trenzinhos dos próprios parques temáticos da Disney.

    Depois de ter sua imagem queimada pelas redes, MC Gui gravou outro vídeo, no qual afirmou que a “internet chata”, a internet que “infelizmente usamos”, seria culpada pela exposição de sua besteira – e pelo julgamento que se seguiu. Foi isso que me chamou atenção na história. Seria mesmo culpa da “internet chata”?

    Ocorre que se a “internet chata” é responsável por impulsionar as críticas ao cantor, pode-se dizer que a mesma “internet chata” foi o sistema que permitiu que suas músicas medíocres se espalhassem, e que ele ganhasse fama. Um sistema que é muito bem esquematizado pelo sociólogo inglês John Thompson, da Universidade de Cambridge.

    Thompson elabora como funcionam as interações na sociedade moderna. Antes das redes sociais virtuais, existiam três formas de comunicação: a face a face, diretamente entre os sujeitos; a mediada, que é quando se usa uma tecnologia (seja a escrita, em e-mails e cartas, ou o telefone) como promotora da conversa; e a quase-interação mediada, na qual a interação se dá entre alguém na TV, no rádio, numa revista, num jornal, e o público. A internet e, em especial, as plataformas de mídias sociais, inauguram um novo modelo, bem diferente dos anteriores. É sobre ele que me debruçarei.

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    Nos antigos esquemas, principalmente no de quase-interação mediada, havia a possibilidade de, digamos assim, editar bem a imagem que um indivíduo queria transmitir ao mundo. Ou seja, se um cantor da década de 1950 era um escroto nos bastidores, não necessariamente o público saberia disso. Por quê? Pois ele só seria apresentado por meio de TVs, da rádio, do cinema, que fariam uma peneira do que realmente gostariam de exibir sobre o fulano. A audiência só teria contato com o lado escroto do famoso se houvesse um vazamento de informações de bastidores, o que não era tão comum assim de acontecer.

    Hoje em dia, não é assim. No novo sistema de interação, o das redes sociais, as pessoas se comportam ao mesmo tempo como plateia e como famosos. Qualquer um pode ganhar os holofotes, da noite para o dia. Isso porque, o que passou a importar não é a qualidade, o trabalho árduo, o conteúdo, em si. Mas a habilidade de se destacar em uma tempestade de imagens que se sucedem no Instagram, no YouTube, no Facebook, no Snap, no TikTok.

    Nisso, MC Gui se mostrou hábil. Basta notar como são construídas suas músicas. No fim, elas não passam de um espetáculo raso ou, seguindo uma definição teórica baseada nos estudos pioneiros do filósofo checo Vilém Flusser, imagens técnicas cujo único fim seria o de promover a mais fugaz idolatria. Idolatria, esta, definida como a “incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-la; portanto, a adoração da imagem”.

    Para fomentar essa adoração cega à sua própria imagem, MC Gui inconscientemente recorreu a técnicas usadas – também inconscientemente, na grande maioria das vezes – por outros dos chamados influenciadores digitais (o que, em seu cerne, ele é). Jogou às favas qualquer complexidade, qualquer elaboração, qualquer reflexão, que poderiam compor as produções e a vida de um artista da música. Em vez disso, apostou em canções grudentas, cujas letras são descartáveis, com batidas que começam frenéticas – sem um trabalho crescente em suas melodias; sem qualquer história sendo contada pelos instrumentos que a regem –, promovidas por vídeos (no YouTube ou em Stories) cheios de pirotecnias. Tudo no formato do produto ideal para fazer sucesso nas redes. E fez sucesso.

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    Em paralelo, apostou também na adoração exagerada da imagem em seus perfis em redes sociais, como no Instagram. Por meio do aplicativo, exibe seu corpo, momentos íntimos em uma banheira, roupas caras que usa… tudo não passa da pura ostentação da imagem. Estratégia que também leva ao sucesso nesses meios.

    Ou seja, em outras palavras, de artista MC Gui praticamente nada tem. Caso se leve em conta as raízes do significado da palavra, que conotaria um sentido de criação, de criatividade, de cultivo às belas-artes, certamente MC Gui não é um artista. O que ele é? Um produto imagético da atual sociedade do espetáculo.

    Ressalta-se que isso não é uma crítica. Trata-se exclusivamente de uma constatação. No entanto, ao se tornar um projeto de si mesmo, um Eu S/A, uma imagem famosa nas redes sociais, MC Gui também se abriu para as consequências que podem ser negativas a ele.

    Um dos efeitos é que o público pouco está se importando para suas produções musicais – caso estas saiam da moda, bastaria, afinal, trocá-las por qualquer outra nova canção grudenta que viralizasse pelo YouTube; não existe uma ligação emocional real entre os fãs e este tipo de trabalho executado pelos produtos das redes sociais. O que a audiência quer ver são suas imagens, seu espetáculo de si mesmo, sua exibição. Por esse mesmo motivo, a plateia vibra quando, em meio a tais imagens, surge uma comprometedora. Como o vídeo no qual ele tira sarro, de forma escrota, da menina na Disney.

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    É curioso notar que nesse caso o vazamento de sua informação privada, que o garoto de 21 anos atribui à “internet chata”, não foi executado por um colega cagueta, um fofoqueiro de plantão que estava ao seu lado, uns paparazzi. Está aí outra característica do novo sistema de interação estabelecido pelas redes sociais.

    Os “vazamentos”, na grande maioria das vezes, são feitos pelo próprio alvo do tal “vazamento”. Quando se vive da própria imagem, de escrutinar a própria privacidade, um efeito esperado é que por vezes a medida não seja bem-feita e passem a ser exibidos momentos íntimos, privados, que os indivíduos não queriam mostrar. E nem adianta correr para apagar depois, como bem provou o caso de MC Gui.

    Mas o que o escândalo em torno do novo mexerico da internet tem a ver com Preta Gil, Saulo Poncio, Julio Cocielo e todos os outros famosos que se comprometeram em posts publicados nas mídias sociais? Tudo. A lógica sistemática apresentada operou de forma igual em cada uma das notícias fofoqueiras destacadas acima.

    Preta Gil, ao dar “parabéns” em post em que Lucas Lucco na verdade anunciava a perda de um filho, submeteu-se à lógica da idolatria. Ela se ateve à imagem, acima de tudo, sem prestar atenção ao conteúdo que a mesma trazia. Nisso, cometeu a gafe. Em texto recente, destaquei como a situação me fez recordar dos seguintes dizeres do filósofo Henri-Pierre Jeudy: “Interpretar, compreender, representar… tornaram-se atividades mentais arcaicas (…) em um mundo onde (…) o fracasso (…) passou a ser redutível a um erro de informação”.

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    Saulo Poncio, ao compartilhar um vídeo no qual tirava sarro da babá de seu filho, também caiu nas armadilhas do sistema de interação fundado pela internet e estimulado nas redes sociais. Poncio (assim como sua esposa) é outro que vive da exposição de sua privacidade. Logo, não faz sentido ter se aborrecido quando sua tática se voltou contra ele.

    Por fim, teve, por exemplo, o caso do youtuber Julio Cocielo, no ano passado. Ele mesmo publicou uma piada racista em seu Twitter. Reclamou depois de ter sido mal compreendido. Porém, a audiência da internet não aceita esse tipo de desculpa por uma razão bem simples: Cocielo se fez em cima de se mostrar nas redes sociais, e nada mais do que isso; logo, por que seria relevado quando essa exposição não lhe cai bem?

    A grande maioria dos casos de vacilos online de celebridades se encaixam na lógica exposta neste texto. No fim, ao se retirar as miudezas, as particularidades, todos os casos se inserem em um mesmo contexto. O cenário é o das redes sociais. Novidades que mexeram com a vida de todos, balançaram a lógica da comunicação e das comunicações, e que sacudiram os alicerces da vida moderna de forma tão tremenda que, por isso, parecem que sempre estiveram presentes.

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    No entanto, é preciso recordar que não faz nem 30 anos que essas plataformas, que nasceram como ferramentas, e se transformaram em mídias, estão por aí. Mal sabemos quais são seus benefícios e males. Por isso mesmo não passa de hipocrisia quando aqueles que se glorificam com base no abuso dos benefícios acabam se queixando da mesma “internet chata”, no momento em que a tecnologia exibe a eles os seus males. Mais justo seria se essas celebridades – como algumas já fizeram, vale frisar –, depois de seus deslizes, simplesmente admitissem: “É ao que me submeti ao topar o contrato da fama online”. Até porque, parte desse contrato também aponta que tanto os momentos de glória, como os no abismo, passam rápido em meio à lógica de imagens sobrepostas de Instagram, YouTube, Facebook, Twitter, TikTok…

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