Quem lucra com os refugiados africanos
O tráfico humano na África e no Mar Mediterrâneo é um negócio ilícito milionário -- e tem ligações diretas com a criminalidade brasileira
A maioria dos relatos e das imagens que chegam até o público ocidental (aí incluo também nós, brasileiros) da onda de refugiados que inunda a Europa concentra-se na travessia do Mar Mediterrâneo. As cenas de barcos à deriva abarrotados de africanos são tão repetitivas que quase já não despertam mais grande assombro.
Uma primorosa reportagem interativa assinada por Malia Politzer e Emmily Kassie publicada no Huffington Post conta o que acontece antes de os refugiados africanos chegarem ao litoral da Líbia para embarcar rumo à Itália. E destrincha, com detalhes, a economia ilícita que esse tráfico de pessoas movimenta. Trata-se de um aspecto pouco conhecido desse fenômeno global.
A investigação jornalística é centrada em Agadez, no Níger, o ponto de distribuição desse mercado humano. Ali chegam do próprio Níger ou de outros países africanos pessoas que fogem do desemprego e da miséria — os chamados migrantes econômicos — ou da violência de grupos islâmicos radicais e de conflitos regionais — os refugiados de guerra. Dali, são levados por atravessadores para a Líbia, numa perigosa travessia do deserto do Saara que dura três dias.
Agadez tornou a capital do tráfico de pessoas para a Europa depois da guerra civil da Líbia, em 2011, que criou um vácuo de poder no país cujo litoral fica a poucas centenas de quilômetros da costa italiana. Em 2013, estima-se que o tráfico humano através do Saara (ou seja, em todo o Norte da África) movimentava no máximo 20 milhões de dólares. Em 2015, a cifra já estava em 300 milhões de dólares só nas rotas que passam pela Líbia.
Os refugiados e migrantes, em especial as mulheres, sofrem abusos dos traficantes durante todo o percurso. Cada um paga em torno de 3000 dólares pelo trecho da viagem entre Agadez e a Líbia. Os que não pagam são obrigados a trabalhos forçados na Líbia. As mulheres, por sua vez, são transformadas em prostitutas já em Agadez, onde adquirem uma escravidão por dívida da qual só conseguem se libertar se fizerem 1.000 “programas” — cada um a míseros 3 dólares. Os cafetões mantêm as mulheres encarceradas em casa durante todo o dia. À noite, após a última reza nas mesquitas, elas são enviadas para as ruas para se prostituir. Só depois de paga a “dívida” podem seguir viagem para a Líbia, onde mais uma vez sofrem abusos. Muitas preferem voltar para suas aldeias e cidades natais quando conseguem se libertar.
Os três principais tipos de “empresários” do tráfico humano em Agadez são o atravessador, o dono de guetos e o transportador.
O atravessador é o sujeito que organiza toda a travessia. Ele cobra o dinheiro dos migrantes, encontra um lugar para eles ficarem até iniciarem a travessia, contrata o transporte e paga as propinas de praxe para que as autoridades façam vista grossa. Um atravessador chega a lucrar cerca de 18.000 dólares por mês com essa atividade.
O dono de guetos aluga para o atravessador os locais onde os migrantes serão hospedados (e escondidos da polícia) enquanto a viagem não começa. Em geral, os guetos são simples quintais com uma cobertura de lona para proteger do sol, onde até 100 refugiados dormem apinhados e esperam durante semanas pela chance de continuarem a jornada. A comida que eles recebem, quase sempre arroz e curry, é pouca. Estima-se em 200 o número de guetos espalhados por Agadez.
Os transportadores são os donos de frotas de camionetes que serão usadas para transportar os migrantes através do deserto até a Líbia. Eles lucram cerca de 3500 dólares por viagem, mas essa não é a principal fonte de renda. Na realidade, os migrantes são apenas uma camuflagem para a carga mais valiosa que é levada nesses veículos: drogas e dinheiro. As drogas — haxixe e cocaína para a Europa e tramadol, um opioide, para os combatentes da Líbia — cobrem o chão da caçamba ou vão camufladas entre a bagagem dos refugiados. Os veículos retornam para o Níger cheios de armas, muitas das quais serão vendidas a grupos terroristas islâmicos, como o Boko Haram, da Nigéria, alimentando assim os conflitos que fazem as pessoas se tornar refugidas.
Estima-se que, entre 2014 e 2016, 1245 refugiados morreram na travessia do Saara na Líbia, no Sudão e no Egito.
A cocaína que vai escondida no fundo da caçamba das camionetes sob os pés dos refugiados chega à África pelas mãos de grupos criminosos associados a facções brasileiras, como o PCC. Da próxima vez que você vir uma foto de um barco cheio de refugiados africanos no Mar Mediterrâneo, lembre-se que não se trata de um problema distante; ele nos diz respeito, sim, assim como nos dizem respeito as guerras de facções criminosas dentro de presídios.
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