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A boa e velha reportagem

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O Ocidente perdeu a ambição

Esta é a explicação para o medo que os europeus têm da globalização, segundo sociólogo austríaco

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 jan 2018, 18h12 - Publicado em 24 jan 2018, 18h09

O debate no âmbito do Fórum Econômico Mundial que começou esta semana em Davos, na Suíça, a respeito do medo da globalização me fez lembrar de uma entrevista que fiz em 2012 com o sociólogo austríaco Meinhard Miegel e que permanecia inédita até agora. Miegel foi um dos primeiros estudiosos a alertar para as conseqüências econômicas e sociais das transformações democráficas pelas quais está passando a Europa — baixas taxas de natalidade, alteração no perfil das famílias, envelhecimento da população e aumento da imigração. Para Miegel, esses fenômenos marcam o fim da predomínio cultural e econômico do Ocidente sobre o resto da humanidade. O medo da globalização no Ocidente, que já se mostrava presente seis anos atrás, é uma decorrência desses fenômenos.

“Nossa contribuição para o mundo, agora, será inventar uma fórmula para manter o nosso padrão de vida mesmo com uma economia e uma população estagnadas,” disse-me Miegel, que é considerado um dos cientistas sociais com maior influência sobre os políticos alemães, que recorrem com frequência a suas análises. Por ocasião da entrevista a seguir, que permanece atualíssima, ele havia publicado o livro Epochenwende (em tradução livre, “Mudança de era”), que entrou para a lista dos mais vendidos na Alemanha ao apresentar os dilemas que o Ocidente enfrenta neste início de século:

O número de imigrantes vivendo na Europa aumentou 75% entre 1980 e 2000. Alguns países têm dificuldade de integrar essa população. O que isso significa para a identidade européia?

A identidade européia está mudando. Em duas ou três gerações os europeus se tornarão uma fusão de etnias e não terão mais a aparência que têm hoje. Nós dependemos de uma grande imigração de jovens. Sem isso, nossas sociedades vão retroceder. Não haverá quem produza, porque a quantidade de bebês que nasce a cada ano é insuficiente para repor as pessoas que morrem. Na Alemanha, por exemplo, precisamos receber, todo ano, 600.000 imigrantes, se quisermos impedir que a população entre em retração. Esses imigrantes virão, em sua maioria, da Ásia e da África. Quando se passeia hoje pelas ruas das cidades europeias, topamos a cada passo com pessoas de feições africanas e asiáticas. Não apenas a aparência física da população vem se transformando, mas também a cultura e a mentalidade do europeu. Esse processo não acontecerá sem conflitos.

Por que os europeus estão tão preocupados em evitar essas mudanças?

É impossível impedir que isso aconteça. É muito simples: se não deixarmos essas pessoas entrar em nossos países, a população vai sumir a uma velocidade tão grande que em um futuro próximo não teremos sequer gente suficiente para perpetuar nossas próprias culturas e tradições. Se não quiséssemos imigrantes, teríamos de aumentar radicalmente as nossas taxas de natalidade, o que é plausível na teoria, mas até agora não tem acontecido. Na Europa, as baixas taxas de natalidade existem há 35 anos e em alguns lugares elas só vêm piorando, como na Rússia. Resta-nos tentar integrar os imigrantes de uma maneira completa. Isso significa fazer de um imigrante marroquino, por exemplo, um perfeito alemão ou francês. É o que se vem tentando fazer, mas não tem dado muito resultado. O fato é que, quanto maior o número dos imigrantes, mais eles se recusam a ser integrados ou assimilados.

A Europa vive uma crise de identidade?

Sim. Os europeus estão empenhados em redescobrir sua identidade comum. A Europa foi, há 300 anos, muito mais “européia” do que é hoje. De lá para cá, o território europeu foi fragmentado pela formação dos Estados-nações, principalmente entre os séculos XVIII e XIX. Antes disso, as diversas regiões da Europa tinham uma história praticamente idêntica: a arquitetura, os estilos musicais e a estrutura econômica se repetiam em toda a Europa, de Paris a Moscou, de Estocolmo a Roma.

Em seu livro, o senhor escreve que a Europa está entrando em uma nova era. Do que se trata?

Trata-se do fim de uma era de dominância européia, que durou cerca de 500 anos. Na fase de desenvolvimento, o número de europeus cresceu de uma maneira espantosa. No ano de 1900, um em cada três habitantes do mundo era europeu. Estávamos muito à frente do resto da humanidade em conhecimento, em capacidade de produção e em organização social. Tudo isso levou à situação atual, em que os cidadãos europeus consomem 17 vezes mais produtos e recursos que a média da população mundial. Nunca houve um fenômeno igual na história. O domínio do Ocidente nos setores econômico e técnico, no entanto, está chegando ao fim. Não estou dizendo que vai haver um declínio ou colapso da nossa sociedade, mas outras nações vão nos alcançar em breve. A fase em que os europeus estavam em vantagem em relação ao resto da humanidade está acabando.

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O que aconteceu?

Depois de 500 anos de domínio cultural e econômico, os europeus estão se mostrando cansados e relapsos. Há três razões para isso. Primeiro porque a Europa é a região que envelhece mais rápido no mundo. Toda a Europa, não só a Ocidental mas a do leste também, tem uma taxa de natalidade de 1,4 filhos por mulher. O resultado é uma sociedade que encolhe, em vez de aumentar. A segunda razão é que, devido a essa baixa natalidade e ao aumento na expectativa de vida, a proporção de velhos cresce muito rápido. Esse fenômeno é mundial, mas na Europa é especialmente acentuado. Em 35 ou 40 anos, vamos ter na Europa uma população com maioria de idosos. A terceira razão é que os cidadãos da Europa Ocidental, graças ao padrão de vida invejável que alcançaram, perderam a ambição. Os mais pobres entre nós têm um padrão de vida maior do que a média da população de muitos países do mundo. Vivemos confortavelmente e, por isso, o nosso engajamento, nossa motivação para aprender, para inovar, para ser empreendedor e para correr riscos, tudo isso diminuiu muito. Os europeus, em geral, querem aproveitar a vida. Nunca as condições foram tão boas para isso. O risco, no entanto, é ficarmos inertes às pressões econômicas do mundo globalizado. Cada vez mais, os europeus agem como se não tivessem um futuro.

Os jovens europeus também perderam a motivação para competir?

“Perder” talvez seja uma expressão forte demais. Com certeza, no entanto, essa motivação já não é mais tão desenvolvida e difundida. Até três gerações atrás a situação era bem diferente. Os jovens europeus de hoje, em geral, pensam assim: “O que nós queremos é fazer belas viagens, conhecer o mundo. Vamos deixar que outros se preocupem em trabalhar e criar riqueza.” A aspiração dos jovens europeus passou a ser a de apreciar as coisas da vida, ter belas férias, pausas longas, se aposentar cedo e, se possível, passar muitos anos apenas estudando. Em suma, querem ser criança até os 35 anos, pelo menos. Enquanto isso, os jovens chineses e indianos estão se capacitando e entram cedo no mercado de trabalho.

Pode-se dizer, então, que os europeus inventaram a globalização e, agora, há países se aproveitando mais rápido da globalização do que os próprios europeus?

Ótima formulação. Os próprios europeus se encarregaram de espalhar pelo mundo o conhecimento e os processos que inventaram para desenvolver suas sociedades. A história do domínio europeu foi uma história de expansão. Saímos pelo mundo ensinando a todos os povos como produzir e como se organizar para melhorar o padrão de vida. O resultado dessa globalização dos mercados e da informação foi que o mundo se tornou mais transparente. Hoje é igualmente fácil adquirir certos conhecimentos em diferentes partes do mundo. Em São Paulo, Bogotá ou Pequim, com um clique no mouse eu posso ter acesso ao mesmo conhecimento que uma pessoa tem em Berlim, em Londres ou em Paris. As pessoas, que são quase iguais geneticamente, têm cada vez mais as mesmas oportunidades. Não por acaso as companhias ocidentais começaram a transferir não só suas linhas de produção, mas também os departamentos de pesquisa e desenvolvimento para os países emergentes. Lá há trabalhadores altamente qualificados, além de baratos. Os cidadãos dos países ricos do ocidente acreditaram durante gerações que o que eles sabiam e eram capazes de fazer era tão inigualável que jamais alguém conseguiria alcançá-los, quanto menos ultrapassá-los. Isso se provou falso.

O que virá depois da mudança de era de que o senhor fala no livro?

Teremos um mundo mais equilibrado. Grandes economias, principalmente da Ásia, vão ascender e atingir patamares próximos dos Estados Unidos ou da Europa. Até dois terços da humanidade vão continuar mais pobres do que a outra parcela, mas as desigualdades serão menores. A globalização é um fato inevitável e positivo para a maioria das pessoas. Sempre haverá, no entanto, uma minoria de perdedores da globalização. No momento, os países africanos parecem estar fadados a esse papel. Já os países europeus e os Estados Unidos terão de se esforçar cada vez mais para concorrer com as novas economias, justamente porque as vantagens que tinham no passado desapareceram. Há 25 anos o Ocidente não vive um aumento no padrão de vida da população. O crescimento econômico que existe hoje conseguimos à custa de um enorme endividamento. Já estamos em uma fase de estagnação e, em alguns anos, entraremos em uma fase de retração dos nossos níveis de consumo.

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Uma discussão constante na Europa e nos Estados Unidos é a transferência de postos de trabalho para os países em desenvolvimento. Por que europeus e americanos estão com tanto medo da globalização?

Eles percebem que a era dos privilégios acabou. Há profissionais tão bons quanto os nossos em toda a parte. O que os trabalhadores das nações ocidentais ricas precisam reconhecer é que eles não precisam ficar pobres para enfrentar essa concorrência, mas precisam, sim, ser mais humildes. Os europeus acham que estão predestinados a serem trabalhadores de luxo. Milhões de postos de trabalho desapareceram da Europa porque se dizia que essa ou aquela função não era valiosa o suficiente. Isso vai desde carregadores de bagagens a frentistas de posto de gasolina. Essas profissões desapareceram porque não era vistas com respeito.

Quais foram as conseqüências disso?

As pessoas não qualificadas — que existem em toda a sociedade, inclusive na nossa — não foram integradas ao mercado de trabalho e começaram a ser sustentadas por programas sociais, como seguros-desemprego. Na Alemanha, por exemplo, há pessoas que formam a terceira geração de uma família sustentada pelo serviço social. No passado, nosso país podia sustentar esse tipo de situação. Agora não podemos mais, justamente pela mudança do perfil da idade média da população. Muitos dizem que esse ou aquele tipo de trabalho não pode ser feito por europeus, porque não é digno. Ou então dizem que jamais poderão aceitar salários como os que são pagos na Índia. Por que não? É preciso ser mais flexível.

Depois do conceito de democracia, o ideal da liberdade e o capitalismo, qual será a nova contribuição da Europa para mundo?

A Europa, que já foi o modelo de sociedade em expansão, terá de se reinventar para ser bem sucedida em uma fase de contração. O mundo estará atento ao que vai acontecer na Europa, porque a maioria dos países também viverá, a partir de 2050, uma redução em suas populações. Outra questão é que será impossível manter para todo o mundo o padrão de vida europeu e americano. Os americanos, com apenas 4,5% da população mundial, gastam cerca de 30% dos recursos energéticos do planeta. Na Alemanha, há um automóvel para cada dois habitantes. Se essa proporção fosse igual em todos os países, teríamos 3,2 bilhões de carros no mundo. Isto é inviável. Por isso, a Europa terá de inventar um novo conceito do que é bem-estar. O que eu imagino é que deverá ser algo menos relacionado a conquistas materiais. Vamos construir menos carros de luxo, arranha-céus e estradas. Teremos de levar uma vida mais modesta e também com menor crescimento econômico.

Com menos crescimento econômico não haverá uma queda na qualidade de vida?

Não necessariamente. Na Europa, nós já atingimos um nível de vida espetacular. O fato de haver menos crescimento econômico não significa que vamos deixar de produzir. Vamos continuar tendo um alto padrão de vida, mas passaremos a ter novas prioridades. Os europeus já não precisam se preocupar em garantir que todos tenham comida, sapatos, roupas e lugar para morar. Isso já foi resolvido na Europa e continuará existindo em quantidade suficiente no futuro. O desafio será descobrir uma maneira de manter a qualidade de vida, sem precisar criar novas demandas materiais e sem crescimento econômico. Essa será nossa contribuição para o mundo.

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Que papel exerce a família nessa mudança de era que o senhor descreve?

A família enfrentou um declínio dramático em grande parte da Europa. A proporção de europeus que formam famílias diminuiu. Os casamentos tornam-se cada vez mais voláteis e há muitas pessoas que vivem no terceiro ou no quarto matrimônio. O número de crianças que são criadas só por um dos pais aumentou muito. É preciso que o núcleo familiar com pai, mãe e filhos viva um renascimento. Parte do sucesso da nova era em que nós estamos entrando depende da recuperação da estabilidade da instituição familiar. A fase de estagnação em que o Ocidente entrou está sendo acompanhada da falta de disposição dos europeus de ter filhos. Isso é ruim. É um mito a ideia de que filhos são um peso econômico. Eles são um investimento para a família e para a sociedade, além do fato de que jovens pais costumam ser mais motivados para o trabalho do que os seus colegas que não têm filhos.

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