O impulso natural quando se vê o corpinho raquítico de uma criança vítima da fome crônica é o de repulsa. Uns viram o rosto, outros fecham os olhos. Para quem se importa com algo mais além do próprio umbigo, é obrigatório assistir à reportagem acima, da BBC, mas é impossível fazê-lo sem ficar chocado, revoltado ou emocionado — ou tudo isso junto. Mas não é esse o motivo que faz com que o mundo não queira ver a grande tragédia alimentar que está se desenrolando no Iêmen, país que já era o mais pobre do Oriente Médio quando foi tragado para uma guerra civil em março de 2015. O mundo não quer ver o que acontece no Iêmen porque é parcialmente responsável pelo que acontece lá (principalmente aquela parte do mundo que se convencionou chamar de “potências ocidentais”).
Mas, antes de buscar a razão para essa omissão, vamos esmiuçar a tragédia. Como explica o vídeo da BBC, postado na página de Facebook da rede britânica no dia 21 de setembro, há 1,5 milhão de crianças subnutridas no Iêmen. As cenas de meninos, meninas e bebês esqueléticos lembram as clássicas fotografias da fome crônica em países como Somália e Biafra no século passado. (Para saber mais sobre isso, veja o documentário sobre o fotógrafo Don McCullin no Netlix.)
Uma das vítimas da subnutrição mostradas na reportagem da BBC é o menino Celine, de 8 anos. Como na criança retratada na foto acima, de McCullin, a cabeça, os olhos e os lábios desproporcionalmente grandes em relação ao resto do corpo são a expressão pura e aterradora da Fome — assim mesmo, com F maiúsculo. No Iêmen, nada menos que 370.000 crianças sofrem de subnutrição com o mesmo grau de gravidade que Celine. A reportagem mostra também um menino de 18 meses que, devido ao desenvolvimento motor prejudicado pela falta de comida, ainda não consegue andar.
Essa tragédia humanitária não é resultado apenas da pobreza longeva no país. Trata-se de uma das consequências da guerra iniciada em 2015, quando rebeldes huti botaram o presidente para correr. Rebeliões, insurgências e conflitos internos são recorrentes na história do país, mas esta é diferente. O Iêmen está sendo bombardeado por um coalizão de países árabes de maioria sunita, liderados pela Arábia Saudita, para evitar que as milícias huti, que são xiitas e apoiadas pelo Irã, dominem o país. O Iêmen é um microcosmo das duas maiores fontes de instabilidade global da atualidade: a rixa entre muçulmanos sunitas e xiitas e a luta contra o terrorismo. O bloqueio econômico imposto pela Arábia Saudita ao país e os bombardeios, que obrigaram 600 hospitais a fechar suas portas, afetam tanto a disponibilidade de alimentos quanto a possibilidade de a população conseguir assistência de saúde e humanitária.
As potências ocidentais não estão envolvidas diretamente neste conflito, mas dão apoio técnico e bélico à coalizão que realiza os bombardeios, que no período de um ano foram responsáveis por metade das mortes de civis. Nem a Rússia, que é frequentemente acusada de não ligar para as mortes colaterais em seus bombardeios na Síria, provoca tanta destruição e morte. Estados Unidos, França e Inglaterra permitem que empresas de seus países vendam armas para a Arábia Saudita usar em sua campanha no Iêmen. Armas que são usadas para destruir mercados, hospitais e mesquitas. Para não deixar a informação tão impessoal: Barack Obama, François Hollande e David Cameron (recentemente substituído por Theresa May) autorizam ou autorizaram a venda das armas que estão agravando a catástrofe humanitária no Iêmen.
Um quarto da população está à beira da inanição. Como esses líderes do mundo livre conseguem pousar a cabeça no travesseiro com a consciência limpa, no fim do dia?
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