Em uma crônica memorável, Gabriel García Márquez confessou, “sem vergonha e até com um certo orgulho machista”, o medo de avião. Assim: “Talvez porque seja um medo diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o medo de avião é o mais recente de todos, pois só existe a partir do momento que se inventou a ciência de voar”. Pavor ainda mais contemporâneo é o de que objetos vindos do espaço caiam sobre nossas cabeças. Convém lembrar do pânico provocado em 1979, quando a estação espacial Skylab — já esvaziada de astronautas — se desintegrou ao reentrar na atmosfera terrestre.
O que seria daquelas 91 toneladas de aço? A chance de um pedaço, pequeno que fosse, atingir uma pessoa era relevante, segundo cálculos matemáticos espalhados como vírus: uma em 152. A possibilidade de atingir uma cidade de 100 000 habitantes chegava a uma em sete. Houve pânico desmedido, apesar da calma pedida pela Nasa, mas, ufa, os destroços caíram sobre o Oceano Índico e áreas desertas da Austrália. Os restos da geringonça hoje estão em museus.
A preocupação do que vem do espaço, contudo, não parou ali, na desventura do Skylab — e tem sido alvo de novos estudos de órgãos internacionais que catalogam o lixo espacial. Há milhões de detritos, sim, de dimensões diversas (veja no quadro). O problema cresceu em ritmo acelerado, resultado da corrida espacial e da entrada em cena de países, como Índia, Japão e Emirados Árabes Unidos, além de empresas privadas como SpaceX e Blue Origin. Com esses novos atores despejando aparelhos pelo céu, é natural que a sujeira fosse multiplicada. É evidente: quanto mais satélites são lançados, maior é a possibilidade de objetos vagarem ao léu, perdidos. Das 15 000 sondas colocadas em órbita desde o início da exploração do espaço, 7 500 ainda estão em operação no mundo — seis são brasileiras, usadas para o monitoramento da Amazônia e dos desastres ambientais. Ou seja, metade virou lixo flutuante, sem função. Há o risco, diminuto, quase nada, de ferir gente de carne e osso. O contato com outras máquinas, contudo, é bem mais provável. “Por isso, temos especialistas de olho, para evitar colisões que ameaçam a integridade dos nossos satélites, equipamentos avaliados em cerca de 500 milhões de reais”, diz Maurício Ferreira, coordenador do Centro de Controle de Satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A princípio havia o entendimento de que tudo que sobe, depois desce. De fato, quando desligados, esses equipamentos são puxados para baixo pela força gravitacional da Terra. Entram em combustão, ao retornar para a atmosfera terrestre, porém não desaparecem totalmente. Sobram pedaços, mas apenas os maiores, com mais de 10 centímetros, estão catalogados e podem ser rastreados. Alguns são enormes, chegam a ter o tamanho de um ônibus escolar, caso do satélite Envisat, lançado em 2002 pela Agência Espacial Europeia (ESA) e desativado dez anos depois. De trajetória desconhecida, as sucatas menores também são perigosas, pois podem destruir espaçonaves em razão da velocidade que atingem.
Para dimensionar melhor a amplitude do impacto do lixo espacial, recentemente uma equipe americana de cientistas da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, sigla em inglês) analisou amostras de ar da estratosfera e percebeu a presença de mais de vinte tipos de partículas de metais — prata, níquel e alumínio — usados na construção de foguetes e de satélites. Felizmente, a poeira metálica não contamina diretamente as camadas mais baixas da atmosfera, nem interfere negativamente na qualidade do ar que respiramos — já degradado. Há, no entanto, o risco de interferência na camada de ozônio, escudo protetor natural contra o aquecimento global. “Pode haver algum dano para a saúde das pessoas”, disse a VEJA Daniel Murphy, um dos pesquisadores do NOAA.
Não é o caso de multiplicar o medo — um medo tão recente, como diria García Márquez. Mas convém atenção. Em 1996, um fragmento proveniente da desintegração de um foguete causou avarias em um satélite militar francês instalado a 660 quilômetros da Terra. Caminhadas espaciais em torno da Estação Espacial Internacional chegaram a ser interrompidas em decorrência do contato com traquitanas em órbita. Regular a exploração espacial, portanto, de modo a barrar a poluição, é o melhor modo de evitar que o cosmo também não se torne um ambiente hostil — já bastam as guerras e a porcaria que fazemos por aqui, embaixo.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866