Não ecoa como “a Terra é azul” do major soviético Yuri Gagarin em 1961, ao dar uma volta no planeta a bordo da cápsula Vostok 1. Não se trata de pôr em pé de igualdade com a frase de todas as frases, “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”, definição de Neil Armstrong para aquele momento em julho de 1969. Mas, ao dizer, linda e calmamente, em palavras evidentemente depois postadas nas redes sociais (à exceção do X no Brasil, fora do ar), que “sair e ver o limite do mundo é absolutamente incrível”, a engenheira Sarah Gillis, da missão privada Polaris Dawn, fincou uma bandeira histórica no imaginário da humanidade, e foi ainda mais longe. Marcou o início de uma novíssima era, sinônimo de ponte para o futuro, das missões espaciais privadas. É momento extraordinário.
O feito, depois de cinco dias em órbita e direito a caminhada no éter: pela primeira vez uma tripulação com quatro astronautas civis passeou pelo cosmo. E nunca, desde que fomos à Lua, chegou-se a altitude tão elevada (veja no infográfico). O grupo da Polaris Dawn ultrapassou a altura da Estação Espacial Internacional, depois a dos satélites e em seguida a do Telescópio Espacial Hubble. Parou a 1 400 quilômetros de distância da Terra. O sucesso da empreitada foi celebrado como a retomada da era dourada das conquistas nos anos 1960 e início dos anos 1970, depois abandonadas. Mas deve-se, sobretudo, aplaudir o empenho do dinheiro privado de mãos dadas com incentivos públicos alocados pela Nasa, a agência espacial americana. É capítulo interessante demais para ser desdenhado.
Por trás da louvável extravagância está o bilionário Jared Isaacman, fundador da empresa de pagamentos Shift4, comandante e financiador da missão e, agora, o primeiro não militar a caminhar pelo espaço. Piloto experiente com recordes de voos de velocidade, ele foi apoiado pela SpaceX, do lunático Elon Musk, para quem transferiu uma quantia estimada em 200 milhões de dólares. Foram anos de treinamento da equipe e de desenvolvimento de novas tecnologias. O aporte de Isaacman serviu para a construção do foguete Falcon 9 e da cápsula Crew Dragon, que já foi utilizada pela Nasa para outras finalidades. “A missão Polaris Dawn prova que pessoas comuns podem alcançar o espaço, embora precisem ter bilhões no bolso”, diz Leandro Russovski Tessler, professor de física da Unicamp.
A missão deixa um legado de inovações. Celebra-se o desenvolvimento de um traje espacial diferente dos usados pelos astronautas profissionais. A tecnologia empregada deu mais mobilidade e flexibilidade à vestimenta, sem diminuir a capacidade de resistência em ambientes hostis. Ela foi projetada com tecidos inteligentes, capazes de gerenciar a temperatura. Ganhou um zíper que ajuda na hora de vestir. E é conectada a um cabo, batizado de cordão umbilical, de 5 metros de comprimento, que sai da nave para fornecer oxigênio, remover dióxido de carbono, além de regular a temperatura e a umidade. O capacete tem uma espécie de óculos de realidade aumentada, o head-up display (HUD), tecnologia já usada em alguns carros de luxo, que exibe dados vitais, como pressão e oxigênio, no visor.
O objetivo principal da caminhada espacial de Isaacman e de Sarah, dupla escolhida para sair da nave, foi justamente testar o traje em ambientes de microgravidade e vácuo, experiência essencial em missões mais longas e, portanto, mais arriscadas. Eles ficaram apenas dez minutos do lado de fora, tempo suficiente para estudos vigorosos. Para Sarah, em comentário algo irônico, algo ingênuo, “o tempo passou muito rápido”. Mas é apenas o começo de uma aventura sem fim.
Dá-se o fascínio porque a expedição ajuda a pôr à prova as alterações que condições tão diversas podem provocar no ser humano. Nosso organismo não é preparado para viver em locais sem gravidade, ou com microgravidade, como o da Estação Espacial Internacional. Lembre-se que o astronauta Marcos Pontes, que depois seria ministro de Jair Bolsonaro, voltou surdo de uma de suas explorações espaciais. Atualmente, ele usa aparelho auditivo. “O resultado dos testes, agora, vai ajudar na preparação das próximas viagens já programadas”, diz Tessler, da Unicamp. Há outras três expedições na agenda da SpaceX.
O objetivo é ganhar capacidade, tração e conhecimento para reposicionar o ser humano na Lua e, quem sabe — eis o sonho dos sonhos —, pousar em Marte, em iniciativa ainda improvável, mas desenhada. Musk nunca escondeu essa ambição e, ao menos nessa estrada, tem provocado menos ruído do que em seus rolos e exageros no comando do X e desmandos no controle da Tesla, cujo carro autônomo parece derrapar, antes de vir a se tornar realidade palpável. Aplaude-se, acima de nossa cabeça, a postura do sul-africano por tentar acelerar uma quimera da humanidade que andava adormecida. Nessa trajetória, o passeio da Polaris Dawn e da tripulação sem medalhas militares merece ser celebrado como início de uma temporada especial.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911