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Olha elas aí outra vez

Caçadas e exportadas, as ararinhas-azuis sumiram do Brasil, mas um punhado delas se livrou da extinção em abrigos europeus. Agora, preparam-se para voltar

Por Bruna Motta e Fabio Codeço
Atualizado em 16 nov 2018, 07h00 - Publicado em 16 nov 2018, 07h00

Notícia boa, muito boa mesmo, para o futuro do Brasil: as arari­nhas-azuis estão voltando. Nativas da caatinga no norte da Bahia, as últimas avezinhas da espécie sumiram do céu brasileiro em outubro de 2000, não se sabe se por morte natural ou pela ação de predadores. Mas livraram-se da extinção: uma parcela das que foram contrabandeadas para Europa e Ásia, sobretudo nos anos 1990, vítimas do tráfico de animais silvestres, acabou sendo resgatada por ONGs de preservação animal e acomodada em cativeiro. Restam hoje 158 arari­nhas-azuis, a maioria na Alemanha e umas poucas na Bélgica. No ano que vem, em uma operação internacional de logística complexa e monitoramento constante, as aves viajarão de volta para seu hábitat e serão paulatinamente reintroduzidas na natureza. Se tudo der certo, vão se reproduzir e tornar a encher os olhos de quem as vir voando pelos ares.

Parece roteiro de filme? Pois é mesmo, em parte. No longa-metragem de animação Rio, de 2011, dirigido por Carlos Saldanha e com uma indicação ao Oscar, a estrela é justamente uma ararinha-azul, Blu, que cai do ninho no Rio de Janeiro (uma licença poética), é capturada e levada para os Estados Unidos. Adotada por uma garotinha carinhosa, Blu volta para o Brasil e passa por muitos apuros antes de conhecer a fêmea Jade, e o casal viver feliz para sempre. Transportando o retorno da ararinha pródiga para a realidade, as primeiras cinquenta aves que vivem em cativeiro vão trocar Berlim por Curuçá, na Bahia, no primeiro trimestre de 2019. A façanha é produto de um acordo firmado entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com apoio do governo, e as duas entidades que abrigam as aves salvas da extinção, a alemã Associação para a Conservação de Araras Ameaçadas e a belga Fundação Pairi Daiza, e vai envolver outras ONGs, empresas privadas, biólogos, veterinários e nutricionistas. “Na área da biodiversidade, este é considerado o mais desafiador projeto de reintrodução de uma espécie na vida livre”, afirma o ministro do Meio Ambiente, Edson Duarte.

O plano de ação para a volta das ararinhas-azuis (não confundir com as araras-azuis-de-lear ou as araras-azuis-peque­nas nem, menos ainda, com as araras-­azuis-grandes, também integrantes da vasta comunidade dessa espécie de pássaro) começou com a criação, em julho, de duas áreas de conservação, no total de 120 000 hectares, uma em Juazeiro, a outra em Curaçá — os dois únicos hábitats do bichinho. Nesse último município está sendo construído o centro de reprodução e reintrodução, viveiro que vai receber a primeira remessa. As cinquenta desbravadoras viajarão em voo fretado de avião de carga viva até Petrolina, em Pernambuco, onde fica o aeroporto mais próximo. A viagem dura dez horas, em que passarão placidamente adormecidas (tendo sido medicadas antes) em camas — ops, caixas — confortáveis, duas a duas.

ARTISTAS DE CINEMA – Cena de Rio: ararinhas-azuis na festa do Oscar (//Divulgação)

Após o desembarque e a passagem formal da guarda, dos veterinários alemães para a equipe brasileira, as ararinhas-azuis serão acomodadas em uma caminhonete e levadas para Curaçá, onde iniciarão o longo aprendizado para a vida em liberdade. Antes de tudo, precisam ser ensinadas a reconhecer e captar na natureza as sementes, folhas e frutas de que se alimentam, já que até agora receberam tudo na mão, ou melhor, no bico. Faz parte do plano de ação recuperar e preservar a parte degradada da caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro, com o plantio de pés de caraibeira, por exemplo, árvore alta onde os antepassados das aves faziam ninhos. Para treiná-las a se defender serão usados sons e figuras de predadores como serpentes e macacos — o objetivo é causar medo e ativar o instinto de preservação. Como são escaladoras, vão precisar saber distinguir qual galho é capaz de sustentá-las. Outro passo importante é conscientizar a população para que participe do processo de reintegração.

Por último, terão de entender que não são gente como a gente. “Animais em cativeiro se percebem mais como humanos do que como seres de sua própria espécie”, observa a veterinária Camile Lugarini, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres. Em todo o processo, a ararinha-azul terá ajuda do maracanã, um primo de hábitos semelhantes que vai guiá-la no reencontro com o mundo selvagem. “Trata-se de um trabalho complexo, lento e gradual”, diz Camile. A previsão é que as primeiras sejam soltas e passem a viver por conta própria em 2021.

A Cyanopsitta spixii, nome científico de uma das menores das treze espécies de arara encontradas no Brasil, com 57 centímetros de comprimento, foi descoberta e catalogada no início do século XIX pelo naturalista alemão Johann Baptist von Spix. A gestação, de trinta dias, produz apenas dois filhotes, uma taxa de fertilidade baixa, o que também contribuiu para a ameaça de extinção. “O maior desafio deste projeto é justamente superar os problemas de reprodução. As aves se acasalam, mas a infertilidade é alta por causa do gargalo genético de uma população reduzida. A espécie ainda tem um longo caminho a percorrer antes de sua sobrevivência ser considerada segura”, explica o pesquisador alemão Cromwell Purchase, que acompanha as aves há oito anos.

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EXEMPLO –  Micos-leões-dourados: protegidos, voltam a ser vistos na Mata Atlântica (Kevin Schafer/Minden Pictures/.)

Mover mundos e fundos para salvar um pássaro não tem nada de descabido — cada espécie à beira de desaparecer é indício de um pedaço do meio ambiente que também está ameaçado. “As aves são indicadores ambientais. Quando uma some de seu hábitat, a informação que vem junto é que um ecossistema do qual a nossa sobrevivência depende está com problemas”, aponta Pedro Develey, diretor da Save Brasil, uma ONG especializada na conservação de aves brasileiras. Das oito espécies de pássaro mais ameaçadas do planeta, cinco são nativas do Brasil e a arari­nha-azul é uma delas, segundo estudo da BirdLife International, instituição inglesa responsável pela “lista vermelha” das aves em extinção (a parente ara­ra-azul-pequena também está lá).

Outro animal brasileiro que esteve a ponto de desaparecer, o mico-leão-­dourado acabou se transformando em símbolo da consciência ecológica. Em 1969, sua população atingiu o mais baixo patamar demográfico, com menos de 150 exemplares. Um programa bem-sucedido de reprodução em cativeiro e reintrodução na natureza ampliou a população para 3 200 animais, que vivem em liberdade nas florestas de Mata Atlântica do Estado do Rio, seu hábitat. Agora é a vez de as arari­nhas-azuis da caatinga baiana crescerem (bem pouquinho) e se multiplicarem.

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Publicado em VEJA de 21 de novembro de 2018, edição nº 2609

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