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O valor da floresta

Tema do Sínodo Pan-Amazônico no Vaticano, a garantia de preservação do bioma é fundamental para que o Brasil retome o caminho de liderança da bioeconomia

Por Carlos Nobre* e Ismael Nobre**
Atualizado em 4 out 2019, 10h45 - Publicado em 4 out 2019, 06h00

A partir do domingo 6 e até o dia 27 deste mês, a Amazônia voltará a ganhar as manchetes do noticiário. Nesse período acontecerá, no Vaticano, o Sínodo Pan-­Amazônico, promovido pelo papa Francisco e que pretende discutir a conservação da floresta e das tradições dos povos indígenas que nela vivem. Além das autoridades religiosas, o evento contará com a presença de doze convidados laicos, incluindo Ban Ki-moon, ex-secretário-geral da ONU, pesquisadores e cientistas de todo o mundo (o cientista brasileiro Carlos Nobre, especialista em mudanças climáticas, professor e pesquisador da USP, coautor deste texto, será um dos convidados). Os participantes terão direito a pequenos discursos de quatro minutos — tempo curto, mas suficiente para iluminar os pontos mais nevrálgicos de uma discussão essencial de nossa época.

A Floresta Amazônica desempenha papel importantíssimo na estabilidade climática e ambiental da Terra. Armazena 100 bilhões de toneladas de carbono na sua rica e densa vegetação e também remove 5% de todas as emissões humanas de gases de efeito estufa, injetadas na atmosfera todos os anos e causadoras do aquecimento global. A floresta tropical é única na sua vigorosa eficiência em reciclar água da chuva, por meio da transpiração das plantas, atenuando os extremos de temperatura e criando condições para um aumento de até 25% das precipitações regionais. O Rio Amazonas é responsável por 15% de toda a água doce fluvial que é direcionada aos oceanos, em âmbito planetário. As variações do nível dos rios durante o ano criam extensas várzeas, locais úteis para a agricultura tradicional milenar. O ciclo hidrológico da Amazônia é crucial para manter a estabilidade climática de chuvas e da temperatura não somente na região mas em outras partes da América do Sul, contribuindo para a produção agrícola e para a segurança alimentar das populações.

Vivem na Amazônia mais de 400 grupos indígenas com enorme diversidade cultural e linguística e que mantêm praticamente intocada a floresta onde habitam, como verdadeiros guardiões. As menores taxas de desmatamento são registradas nos territórios indígenas, com não mais de 3% de área destruída. Contudo, o impacto de fatores humanos sobre a Amazônia, atrelado ao modo de desenvolvimento instituído no século XX e que perigosamente continua a perdurar até hoje — com mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global, desmatamentos e degradação florestal, aumento das queimadas e incêndios florestais —, traz riscos inaceitáveis. Estudos mostram que a Amazônia se aproxima de um ponto de destruição de não retorno, que aconteceria se o desmatamento ultrapassasse 20% da área de floresta e implicaria o prolongamento da estação seca em até 70% da região florestal, atalho para uma savanização. Isto é, haveria a conversão irreversível para uma vegetação com menos biomassa e biodiversidade, numa espécie de cerrado degradado.

Hoje o desmatamento já bateu nos 17%, e no ritmo atual esse ponto de não retorno seria alcançado em cerca de vinte anos. Nas porções sul, sudeste e leste da Amazônia o clima já vem mudando aceleradamente, com acentuado aumento da temperatura durante a estação seca, que registrou ainda prolongamento de duração. São sinais alarmantes do enfraquecimento desse “coração biológico”. Não podemos pagar para ver se esse ponto de ruptura será atingido. O Brasil tem planos de restaurar 12 milhões de hectares até 2030, dentro dos compromissos com o tratado internacional Acordo de Paris. Grande parte dessa recuperação, não menos de 6 milhões de hectares, deve acontecer nas áreas mais desmatadas, especialmente no sul e no sudeste da Amazônia. Agir é preciso.

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“Estudos mostram que a Amazônia se aproxima de um ponto de destruição de não retorno”

Em paralelo, para aliviar preocupações econômicas, é necessário entender a oportunidade de desenvolvimento de um novo paradigma sustentável que garanta o valor da floresta em pé, e não derrubada. Há uma janela para a criação de bioindústrias na Amazônia, em variadas escalas — desde a local, em comunidades, até em um âmbito maior, aproveitando os imensos ativos biológicos. Se bem executada, essa empreitada permitirá ao Brasil a criação de diversos produtos — nas áreas farmacêutica, de alimentos, bebidas, cosméticos, matérias industriais, entre outras —, ou mesmo a exploração do gigantesco potencial dos recursos genéticos existentes.

O aproveitamento de produtos como açaí, castanha e cacau vem trazendo melhor qualidade de vida a milhares de agricultores. A rentabilidade por hectare desses frutos amazônicos é muito superior à da pecuária ou mesmo da soja. O caso do açaí é digno de nota. Tornou-se, ao longo dos últimos vinte anos, produto de consumo mundial e que já traz acima de 1 bilhão de dólares por ano para a economia da Amazônia. Entretanto, o processo de industrialização do açaí dá-se todo fora da Amazônia, principalmente em mercados estrangeiros. Há que reverter a tendência crescente de desindustrialização nacional, para assim desenvolver inovadoras bioindústrias para a exploração do que o Brasil tem em máxima abundância mundial: sua biodiversidade.

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Com a melhor ciência, somada a avançadas tecnologias, essa nova abordagem pode salvar a floresta, possibilitando atividades economicamente sustentáveis, além de proteção aos ecossistemas amazônicos, aos povos indígenas e às populações tradicionais. Esse novo paradigma de desenvolvimento deve ser socialmente inclusivo, combinando conhecimentos científicos e tradicionais para conceder poder a comunidades locais, a fim de que tais inovações contribuam para o bem-estar e a salvaguarda do bioma. As tecnologias devem servir a tais necessidades, e não o contrário disso — como se dá no atual modelo tecnocrático, que domina o uso dos recursos naturais, acentuando desigualdades e promovendo devastação.

O futuro sustentável da Amazônia depende de buscarmos, já, esse viés da bioeconomia de modo a valorizar a floresta e o bem-estar das populações. É algo que está ao nosso alcance, se assim o desejarmos como nação. Se adotarmos essa postura, poderemos nos tornar a primeira potência ambiental da biodiversidade. Só com a manutenção dos serviços ecossistêmicos únicos com que a Amazônia nos brinda, priorizando a proteção da biodiversidade, viabilizaremos esse futuro de liderança global.

* Carlos Nobre, climatólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP
** Ismael Nobre, biólogo, coordenador científico do Projeto Amazônia 4.0

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Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655

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