O novo alfabeto da vida
Cientistas americanos e japoneses fabricam substâncias que, teoricamente, podem estender o número de compostos químicos que formam a base dos seres vivos

Aprende-se no colégio que o DNA — o palavrão ácido desoxirribonucleico — de todos os seres vivos é composto de quatro bases nitrogenadas: adenina, timina, guanina e citosina. Elas são representadas pelas letras A, T, G e C. Cada uma dessas substâncias é essencial para a estrutura genética: elas têm papel-chave no armazenamento de informações bioquímicas que são passadas de geração em geração das espécies. Sem elas, portanto, não existiriam seres humanos, animais, plantas — nem simples bactérias — na Terra. Por essa razão, apelidou-se o conjunto das quatro letras — A, T, G e C — de “alfabeto da vida”.
Um estudo publicado na sexta-feira 22 transformou o que se sabia até agora sobre esse abecê da ciência. Pesquisadores liderados pelo bioquímico americano Steven Benner, da Universidade Harvard, e pelo farmacêutico japonês Shuichi Hoshika, da Universidade Hokkaido, demonstraram que o alfabeto da vida pode ser maior do que se supunha. O grupo de cientistas produziu em laboratório quatro substâncias químicas sintéticas que poderiam substituir as já conhecidas quatro bases nitrogenadas. As substâncias artificiais — fabricadas por meio de um sintetizador de material genético, com base em combinações de partículas de hidrogênio e oxigênio — foram batizadas com as letras B, S, P e Z. Quando mescladas entre si ou com as substâncias do alfabeto original — adenina, timina, guanina e citosina —, o resultado foi exatamente um DNA funcional. Ou seja, o experimento conseguiu a proeza de preservar a estrutura em dupla-hélice da molécula da vida, mantendo estáveis todos os seus componentes químicos. Assim, em teoria, seria possível executar as tarefas genéticas do DNA em um organismo — como transportar informações hereditárias — com outras substâncias que não as quatro originais (A, T, G e C).
Na prática, o alfabeto da vida foi alongado. Além dos quatro elementos naturais, podem se integrar a eles esses outros quatro artificiais. O novo modelo ganhou a alcunha de “Hachimoji”. Em japonês, a palavra significa oito letras — a quantidade de caracteres agora possíveis no DNA. Explicou o bioquímico Steven Benner ao divulgar a experiência: “O objetivo não foi criar uma molécula para um fim específico. O que fizemos foi conceber um sistema inteiro com o qual podemos, daqui para a frente, trabalhar a fim de compreender melhor a vida e fazer com ela o que a evolução realiza: alterar e adaptar”.
O ousado projeto de Benner e Hoshika teve início há mais de três décadas, em 1985. As primeiras duas bases hidrogenadas artificiais surgiram em laboratório em 1989. Contudo, não foi possível testar o material antes de formular outras duas substâncias sintéticas. A equipe só chegou ao incrível feito de fabricá-las neste ano. Com o alfabeto, digamos assim, completo, comprovou-se, na máquina de sequenciamento genético, que, em tese, os elementos representados pelas letras B, S, P e Z também poderiam dar origem a alguma forma de vida, por meio da construção de uma molécula de DNA.
Um dos objetivos mais ambiciosos da ciência é a procura da origem da vida. Na Grécia Antiga, Leucipo de Abdera já considerava a ideia de que o mundo seria composto de diversas partículas indivisíveis, as quais, quando juntas em grandes quantidades, formariam árvores, rios, pessoas etc. e agiriam de acordo com as leis naturais. No século XIX, o bioquímico suíço Friedrich Miescher (1844-1895) descobriu uma molécula que, nos seres vivos, faria o papel dessa “partícula indivisível”: o DNA. Entretanto, foi apenas em 1953 que começou a se desvendar do que seria feito esse elemento essencial da vida. Foi quando o biólogo americano James Watson e seu colega inglês Francis Crick (1916-2004) revelaram a estrutura tridimensional em forma de dupla-hélice do DNA, constituída pelas tais quatro bases hidrogenadas, A, T, G e C. Elas seriam as letras da vida. O novo estudo comprova que podem existir muito mais letras nesse abecedário.
Só o tempo mostrará quais serão os avanços possíveis a partir de tal descoberta. “Teoricamente, ter mais tipos de base, artificiais ou não, significa que mais proteínas poderiam ser codificadas pelo DNA. Ou seja, há a perspectiva de criação de aminoácidos que ainda não conhecemos, com funções inovadoras”, afirma o bioquímico Ricardo Jose Giordano, da USP. Uma das oportunidades que se abrem, segundo ele, é a fabricação de fitas de DNA capazes de armazenar dados digitais com eficácia muito superior à de computadores modernos. As possibilidades, todavia, vão muito além. O novo experimento sugere que pode existir vida extraterrestre composta de construções de DNA bem diversas da que imaginamos. Também pode servir de base para que cientistas consigam fabricar seres inteiros a partir de moléculas criadas em laboratório. Por ora, tudo isso não passa de ficção científica. Mas abriu-se um caminho de infinitas possibilidades.
Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624

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