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O CSI da fauna africana

Laboratório de genética forense aberto no Quênia é ótimo exemplo de como tecnologias modernas podem ajudar na construção de um planeta sustentável.

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h46 - Publicado em 16 Maio 2015, 09h34

Por sua rica e exclusiva fauna e flora, a África sofre com o ritmo acelerado de extinções causadas por ações humanas como a caça e a emissão descontrolada de CO2 na atmosfera. Agora, contudo, tecnologias dignas de figurar em um episódio da série policial CSI: Crime Scene Investigation são postas a serviço dos animais ameaçados. O governo do Quênia, por exemplo, acaba de inaugurar um avançado laboratório de genética que aplica análises forenses para proteger espécies em risco, especialmente rinocerontes e elefantes. Com o cruzamento desses dados com informações das reservas ambientais africanas é possível descobrir a origem da presa abatida e, com isso, onde os caçadores atuam. Funciona como em uma investigação criminal que busca por um assassino. Localizar os bandidos é historicamente a maior dificuldade de combater o problema da caça ilegal. A inovação permitirá chegar rápido a eles – e prendê-los.

Sempre que se interceptar carne, marfim ou chifre no centro e no leste da África, amostras do carregamento serão coletadas e enviadas para o laboratório queniano. Lá é realizada a análise de DNA que indica qual a espécie e até a qual família pertenceu o animal. Os dados são cruzados com um banco de informações de reservas ambientais. O trabalho permite a localização exata de onde ocorreu o crime. Agentes ambientais e policiais se encarregarão de ir até a origem, onde tentarão desbaratar a rede ilegal.

O americano Thomas Snitch, cientista da computação da Universidade de Maryland e criador de um projeto que propõe o uso de drones para localizar caçadores, compara essas organizações criminosas com grupos terroristas. Explica ele: “Como é com a Al-Qaeda, o dinheiro chega às mãos de grupos como o Janjaweed e a al-Shabaab, que se abastecem de armamento e mercenários que se espalham pela África.” Snitch frisa que o combate é ainda mais problemático pelo fato de os principais soldados da linha de frente, os guardas florestais, receberem salário risível de 150 dólares mensais. Jogados na pobreza, enfrentam uma máfia que lucra até 1 milhão de dólares com a comercialização de apenas um chifre de rinoceronte no mercado negro. Isso torna os guardas menos propensos a se arriscar pelos animais e também mais suscetíveis à corrupção.

Snitch acredita que a saída é o emprego da tecnologia, não corruptível. “Trabalhei com estratégia igual, pelo uso de drones, em combates militares no Afeganistão e acredito que a lógica se aplica à África”, diz. Para vencer a batalha, ele aposta na coleta de dados do habitat por satélites e identificação dos caçadores e acompanhamento das famílias de animais por GPS e drones. Sua iniciativa de monitoramento constante das savanas ainda busca financiamento. Porém, Snitch defende que com investimentos pequenos, de 450 000 dólares, é possível garantir a redução de 70% da caça ilegal.

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A situação é grave na África. A população de rinocerontes caiu 97,6% desde 1960. A de gorilas-da-montanha conta com menos de 900 indivíduos. No ano passado, 35 000 elefantes africanos foram mortos. Os leões perderam 85% do território original. Estima-se que 2 000 zebras sejam as únicas sobreviventes da espécie no continente. Chifres de rinocerontes valem mais do que ouro no mercado negro pela crença – estúpida, em todos os sentidos – de que eles podem curar de ressaca a câncer. Marfim de elefante é usado em joias e em figuras religiosas, vendido a 1 000 dólares a grama. Zebras são caçadas pela sua pele, enquanto filhotes de gorila são vendidos a 40 000 dólares. Os leões, com a perda de habitat, vivem próximos de humanos e são abatidos por fazendeiros. Neste ritmo, os animais listados neste parágrafo, dentre os mais belos da Terra, podem ser extintos ainda nesta geração da humanidade.

A organização ambientalista WWF avalia que, do total de 100 milhões de espécies existentes, 10 000 são extintas por ano. Especialistas calculam que a taxa atual de perda seja de 1 000 a 10 000 vezes maior do que o índice de extinção que seria natural. Ou seja, o aumento foi claramente causado pela interferência humana. Deve vir do homem, também, a solução.

No Quênia, onde foi implantado o laboratório forense, uma espécie é exemplo máximo das consequências de séculos de descaso. O magnífico rinoceronte-branco-do-norte vive com os dias contados. Há somente cinco exemplares, sendo que três vivem dentro da área de preservação queniana Ol Pejeta. Lá reside o único macho, idoso, e última esperança de novos filhotes. Os animais vivem rodeados 24 horas por dia por guardas armados, além de serem marcados com rádio-transmissores. Caçadores da espécie são agora caçados com afinco por agentes federais disfarçados. No caso dos rinocerontes-brancos, espera-se por um milagre. Já se estuda seu DNA para tentar criar clones em laboratório.

O passado, felizmente, traz alento. O homem conseguiu reverter situações drásticas criadas por ele mesmo. Na década de 80, os elefantes africanos foram exaustivamente abatidos até sobrar 1% da população original. Graças a ações conservacionistas, hoje há 450 000 exemplares na natureza e tudo indica que o número não parará de crescer.

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O avanço das tecnologias de big data, capazes de garimpar em mundaréus de dados digitais aqueles que são relevantes, atua em favor dos animais africanos. Um exemplo: pela tecnologia atual é possível detectar na hora um e-mail ou um telefone de um caçador ilegal, determinar sua localização e levá-lo à prisão com provas concretas contra ele. Iniciativas que permitam a implantação desse tipo de tática devem ser incentivadas, e financiadas. Como é o caso do laboratório do Quênia.

Disse a VEJA Francis Gakuya, veterinário do Serviço para a Vida Selvagem do Quênia (KWS, na sigla em inglês) e integrante do laboratório: “Pela primeira vez conseguimos tecer um link direto entre um animal caçado e a cena do crime. Assim teremos evidências para julgar casos em tribunais. Taxas de condenação vão aumentar e, por efeito, espécies ficarão mais protegidas.”

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O KWS divulga também um trabalho no qual usará drones para rastrear em tempo real os 52 parques e reservas sob seus cuidados. Um projeto piloto realizado em uma área de proteção ambiental (não identificada para evitar que caçadores mudem de estratégias) comprovou que o índice de caça cai 96% após a implementação. Os drones usam frequências de rádio para monitorar movimentos de animais e homens nas regiões. Eles identificam caçadores antes de abaterem as presas. A iniciativa, que deve entrar em operação em todos os parques, custará 103 milhões de dólares. Mas se tem mesmo o poder de reduzir em mais de 90% a ocorrência do tráfico ilegal de espécies em risco de extinção, vale cada centavo.

Boas intenções não faltam. A Conservation International (CI) e a gigante americana HP criaram o Earth Insights para analisar dados de florestas tropicais. A IBM colocou seu braço sem fins lucrativos, a Corporate Services Corp., para trabalhar com a ONG Nature Conservancy na integração de um serviço que monitora e auxilia moradores da Amazônia brasileira na preservação da fauna e flora. A Intel desenvolveu um chip com comunicação 3G, chamado Galileu, que é instalado em rinocerontes na África para rastreá-los.

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O sucesso das iniciativas africanas, que lideram a implementação das tecnologias de ponta nos esforços conservacionistas, pode ser decisivo para que projetos semelhantes se espalhem pelo planeta. “Se instalássemos laboratórios forenses (como o queniano) nos habitats mais ameaçados do Brasil certamente conseguiríamos proteger nossas espécies de forma efetiva”, diz a bióloga brasileira Haydée Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De acordo com cálculos da pesquisadora, 100 000 reais seria o investimento inicial necessário para montar uma estrutura do tipo.

Haydée coordena um projeto-modelo que tenta impulsionar a instalação dos laboratórios no Brasil. Em janeiro, uma moratória entrou em vigor para proibir a pesca do piracatinga, peixe normalmente capturado com iscas feitas de carne de botos e jacarés, animais ameaçados e caçados ilegalmente na Amazônia. A pesquisadora analisa o DNA de presas achadas pela fiscalização para decifrar de onde elas vieram e, assim, flagrar criminosos. O caso, exemplar, foi relatado por reportagem de VEJA.

Mas, ao contrário da boa vontade exibida em países africanos como o Quênia, a fauna brasileira enfrenta também o constante descaso do governo. Histórias como a de Haydée são raras. A rotina é o comércio ilegal desenfreado de espécies como papagaios, araras, jacarés. Em exemplo máximo, peixes-boi marinhos estão ameaçados de serem despachados para fora do país justamente porque aqui teriam menor chance de sobrevivência. Instituições brasileiras tiveram de admitir a própria incapacidade (e a do governo) e estão dispostas a abrir mão de exemplares de cativeiro para serem preservados no Caribe.

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