Novas descobertas revelam como viviam os Guarani antes da chegada dos colonizadores
Análise de vestígios vegetais em aldeia do Rio Grande do Sul revela hábitos alimentares, cultivos e rituais dos povos Guarani entre os séculos 14 e 19

Uma pesquisa arqueológica feita no Rio Grande do Sul revelou detalhes surpreendentes sobre os hábitos alimentares e sociais dos Guarani muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Cientistas encontraram 472 vestígios de plantas carbonizadas em um sítio arqueológico localizado às margens do Rio Forqueta, no município de Marques de Souza. Os fragmentos foram estudados por arqueólogos da Univates, UFPel e instituições argentinas, e mostraram que o milho era parte central da alimentação — e também de cerimônias religiosas.
O sítio, chamado RS-T-114, foi ocupado entre os anos de 1324 e 1809. A descoberta mais impressionante é a presença de restos de milho, feijão e mandioca — cultivos que, segundo os autores, chegaram ali vindos da Amazônia, a centenas de quilômetros de distância. Essas plantas foram domesticadas muito antes e transportadas aldeia por aldeia, em um processo que durou séculos.
Quais plantas eles usavam?
O milho representou cerca de 75% dos vestígios identificados. Além de base da dieta, ele era usado em rituais importantes, como a festa anual da colheita e as cerimônias de passagem para a vida adulta, que envolviam bebidas fermentadas à base do cereal. Os pesquisadores identificaram três tipos diferentes de milho, o que indica um conhecimento sofisticado de cultivo e seleção de sementes.
Outros vestígios incluíam sementes de feijão, mandioca e espécies nativas como jerivá, paineira e timbaúva. Algumas delas serviam para alimentação, outras para pesca, medicamentos e até mitos de fundação. Ao todo, foram identificadas 13 espécies vegetais diferentes, combinando plantas cultivadas e silvestres, o que demonstra um uso integrado dos recursos da floresta e da agricultura.
Por que o milho era tão importante?
A predominância do milho na amostra pode estar ligada ao seu papel simbólico nas práticas culturais Guarani. Entre os rituais destacados, está o avatikyry avati hemongarai, uma festa anual dedicada ao milho, e o kunumi pepy, cerimônia de passagem dos meninos para a vida adulta. Nessas ocasiões, o milho era utilizado na produção de bebidas fermentadas, servidas em tigelas de cerâmica do tipo kambuchi kaguava, e acompanhava a colocação do tembetá, um adorno labial feito de quartzo.
Esses elementos foram encontrados em escavações realizadas em duas áreas distintas da aldeia: uma interpretada como local de descarte de resíduos e outra como espaço cerimonial. Essa divisão reforça a hipótese de que o milho tinha importância que ia além da alimentação diária — estava associado a momentos de transição, identidade e celebração coletiva.

Como era a aldeia?
Durante as escavações, os arqueólogos classificaram o espaço em duas áreas principais. A primeira, rica em fragmentos cerâmicos, líticos e ossos, foi identificada como um antigo depósito de lixo. A segunda apresentou objetos associados a práticas sociais, como cerâmicas decoradas e 21 adornos labiais, indicando um espaço dedicado a eventos coletivos, festins e rituais.
A descoberta de vestígios carbonizados nesse segundo ambiente sugere que os momentos de celebração envolviam o preparo e consumo de alimentos específicos, provavelmente em grande quantidade e com valor simbólico, como o milho fermentado.
O que os achados revelam sobre sustentabilidade?
Além das lavouras, os Guarani manejavam a floresta de forma cuidadosa e sustentável. A paineira fornecia fibras e folhas comestíveis, a timbaúva era usada na pesca como veneno natural e também na medicina, e o jerivá tinha papel tanto econômico quanto espiritual, aparecendo em mitos e influenciando a escolha de locais para plantio.
Os autores destacam que, embora a variedade de plantas identificadas seja menor do que a descrita em registros etnográficos recentes, isso se deve ao tipo de vestígio preservado — restos queimados, geralmente associados a eventos pontuais. Futuras análises, com técnicas como identificação de fitólitos e amido, devem ampliar o retrato do uso de raízes e tubérculos.