Conforme o mundo moderno foi sendo guiado pelas luzes do iluminismo, a razão passou a ser cultuada acima de tudo, ao mesmo tempo que a intuição ficou relegada ao rol dos misticismos e crendices. Mas aí veio a ciência e deu uma chacoalhada nessa percepção. O primeiro passo relevante para a reabilitação do pensamento intuitivo seria dado com sua definição científica pelo economista e prêmio Nobel israelense Daniel Kahneman, nos anos 1990, que mais tarde organizaria o conceito no best-seller Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Ali, ele contrasta o modo vagaroso, cercado de conjecturas e com muito uso da massa cinzenta, com um processo mais ligeiro, que aciona a memória e experiências para chegar a uma decisão. Depois, a neurociência entrou em campo para decifrar em que regiões do cérebro esses dois tipos de raciocínio germinam e identificou-os no mapa da mente. O primeiro, racional, se concentra na área do córtex, enquanto a intuição frutifica no sistema límbico e no chamado tronco encefálico. São, portanto, duas capacidades humanas que, empregadas com afinco, podem produzir resultados extraordinários.
Uma vasta pesquisa, conduzida pela Universidade de São Paulo em parceria com o Imperial College, de Londres, e a Montpellier Business School, da França, foi averiguar os resultados colhidos no mundo corporativo com ambos os caminhos do pensamento. Para tal, dividiu profissionais em grupos distintos e lhes pôs o mesmo desafio intelectual — uma ala deveria buscar soluções a partir da lógica pura, sem olhar o relógio, e a outra deixaria a intuição se encarregar do processo, dando respostas imediatas. Os problemas postos à mesa eram inéditos e exigiam a habilidade de juntar peças e botar a criatividade à prova. Pois a turma dos intuitivos se saiu melhor. “O resultado reforça a ideia de que o exercício cerebral dessa natureza é extremamente valioso no terreno da inovação e desconstrói o mito de que a intuição não tem utilidade no universo do trabalho”, diz Marlon Alves, autor da pesquisa e especialista em comportamento corporativo.
Está comprovado que todos os indivíduos possuem as duas habilidades — o xis da questão é quando saber usar cada uma delas. “Em certas situações, o excesso de dados e a razão em grau máximo são um freio à inventividade”, afirma o economista comportamental Robson Gonçalves, da Fundação Getulio Vargas. A nova leva de estudos sobre a intuição esclarece que ela funciona melhor justamente quando a pessoa não está cercada de um turbilhão de fatos e dados e também não se deixa levar pela emoção, um equilíbrio delicado. “Para que o pensamento intuitivo prospere, não dá para ficar preso a um modelo mental demasiadamente rígido”, diz o neurocientista Ariovaldo Silva Junior, da Federal de Minas Gerais.
No livro The Intuition Toolkit (“O kit de ferramentas da intuição”, em tradução livre), o psicólogo australiano Joel Pearson traça uma espécie de cenário ideal para a intuição se provar eficaz — entre elas, ter domínio sobre o tema e evitar que impulsos e desejos tomem conta do processo decisório. Importante também, lembra Pearson, é não aplicá-la quando os fatos apontam inequivocamente para uma certa direção. Aí, sim, o pensamento racional deve se sobrepor. “Previsões, estimativas, tendências — tudo isso é vital no mercado de capitais. Mas às vezes surge um evento-surpresa e uma boa dose de intuição ajuda”, afirma o analista de investimentos Rodolfo Costa, 21 anos.
Uma pesquisa conduzida pela University College London enfatizou a importância do pensamento intuitivo ao analisar a falta dele em pessoas que apresentavam diferentes graus de comprometimento da área em que floresce no cérebro. “Vimos que, quando a intuição não age, há maior dificuldade de tomada de decisões, o que sustenta a linha de que ela é um pilar vital”, explicou a VEJA o cientista inglês David Robson. Os especialistas afirmam que em todas as carreiras — mesmo as que envolvem as ciências exatas — é produtivo acionar a tal região da mente onde são armazenadas memórias e experiências que ajudam a nortear aquele pensamento que não é estritamente racional. Após ouvir centenas de enfermeiros no Reino Unido, professores da Universidade de East Anglia descobriram que, ao tratar de seus pacientes, eles consultavam os formulários-padrão apenas como ponto de partida. A ele, somavam-se o raciocínio clínico e, também ali, a intuição. “Aliar conhecimento à sensibilidade é um bom recurso. Com o tempo, você aprende a se ouvir e não abre mão disso”, diz Eduarda Lopes, 21 anos, da área de saúde pública da Fiocruz.
Cabeças excepcionalmente inovadoras revelaram em distintos momentos da história girar a roda da criatividade abrindo espaço ao pensamento intuitivo. “Meu instinto nunca me abandonou. Tenha coragem de seguir seu coração e intuição. Tudo o mais é secundário”, defendeu o visionário Steve Jobs (1955-2011), em memorável discurso a uma plateia de alunos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Jobs não era dado a pesquisas de mercado para rastrear os desejos das pessoas. “Nossa missão é entender o que vão querer antes delas próprias”, pregava. Instado a refletir sobre sua genialidade, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) afirmou que era o híbrido de razão e intuição que o levava a desbravar territórios nos quais ninguém pisara antes. E assim enunciou a equação em que acreditava: “A intuição é um dom divino e a razão, uma serva fiel”. É difícil duvidar de um dos seres mais inteligentes que já viveu.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864