Em 16 de setembro de 1620, o Mayflower zarpou da Inglaterra com destino ao Novo Mundo, transportando 102 peregrinos e inaugurando a colonização do país que viria a ser os Estados Unidos. Quatrocentos anos depois, no mesmo dia e no mesmo porto britânico de Plymouth, de onde a antiga embarcação se lançou ao Atlântico, um novo Mayflower, completamente diferente daquele, foi oficialmente batizado. Dessa vez, porém, a missão desbravadora é outra: nos próximos dias, a nau inaugurará uma nova era nas navegações, sem passageiros nem tripulação, viajando de forma completamente autônoma.
Quatro séculos atrás, o Mayflower era um navio quase todo de madeira, com 30 metros de extensão, três mastros e velas de lona, que navegava a uma velocidade média de 6 quilômetros por hora. Já o novo modelo é feito de liga de alumínio, tem 32 metros de extensão, painel de energia solar e gerador de reserva a diesel, e é capaz de navegar três vezes mais rápido. E o mais relevante: é controlado por inteligência artificial, concebida pelo gigante IBM, que está conectada a seis câmeras e trinta sensores, o que dispensa supervisão de bordo, fazendo dele um veículo marítimo inovador.
O Mayflower do século XXI é efetivamente guiado pela tecnologia, e não por pessoas — mais especificamente por um software que analisa informações vindas de radares, satélites e outros equipamentos que ajustam seu percurso e velocidade, evitando colisão com outras embarcações. O sistema tem como objetivo principal comprovar a viabilidade de navios sem assistência humana. Para chegar ao local que hoje constitui o estado de Massachusetts, na costa nordeste dos Estados Unidos, os peregrinos do século XVII singraram 5 600 quilômetros em dois meses. No novo barco, o mesmo percurso levará apenas três semanas, sem a necessidade de marujos e oficiais. E, na verdade, sem peregrinos também.
Ao refazer a jornada histórica, o reluzente Mayflower não só provará sua capacidade de navegação autônoma, como também coletará informações da vida marinha, monitorando constantemente a temperatura e os níveis de sal e oxigênio das águas, além de verificar a existência de microplásticos poluentes no mar. Outro dispositivo especial são os microfones, que captarão sons emitidos por baleias encontradas pelo caminho. A coleta de dados científicos é capitaneada pela empresa de pesquisa oceânica ProMare, que investiu mais de 1 milhão de dólares na construção do Mayflower. A Universidade de Plymouth e a IBM também ajudaram a financiar o projeto.
Apesar de toda a tecnologia e cuidados, o grau de aventura do projeto é inequívoco — sujeito, evidentemente, a contratempos, chuvas e trovoadas. Poucos dias depois da primeira partida do porto de Plymouth, em 15 de junho, com 10% do percurso já concluído, um problema no gerador a diesel forçou o retorno da embarcação à Inglaterra para reparo e, até 29 de junho, o barco aguardava sinal verde para zarpar novamente. É interessante lembrar que o Mayflower original também teve de voltar ao porto algumas vezes antes de se lançar definitivamente em alto-mar, o que fez com que os peregrinos quase desistissem da viagem. “Barcos quebram com frequência, e o nosso não seria exceção”, declarou Brett Phaneuf, diretor do projeto, diante da ocorrência.
Embora os percalços existam, a empolgação com o Mayflower e com outros barcos do tipo não arrefeceu. “Embarcações autônomas são tendência mundial e, no momento, estamos vivendo o limiar dessa tecnologia”, afirma Hélio Mitio Morishita, professor do departamento de engenharia naval e oceânica da Poli-USP. Segundo Morishita, a inteligência artificial, quando empregada em navios comerciais, dará origem a uma frota que terá impacto no transporte mundial, com redução de custos de mão de obra.
Com os últimos avanços, a tecnologia já tornou automatizados e semiautônomos alguns processos de carga e descarga nos portos mais avançados. Porém, a fim de receber grandes embarcações conduzidas exclusivamente por softwares, essas tecnologias precisam ficar ainda melhores. Até agora, depois de alguns anos de testes, existem dificuldades técnicas e legais a superar antes de pôr para rodar os aguardados carros autônomos. Imagine o tamanho do problema quando se trata de cargueiros e petroleiros de 10 000 toneladas. Para chegar lá, as esperanças estão depositadas no sucesso de embarcações como o moderno Mayflower. Assim como a sua versão histórica, ele pode ficar marcado como o navio pioneiro de uma grande mudança.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745