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Lobo-terrível: modificação genética é suficiente para ‘desextinguir’ espécie?

Animal da startup Colossal tem apenas 15 genes da espécie original do 'Dire Wolf' de 'Game of Thrones'

Por João Lucas da Silva para Revista Questão de Ciência*
Atualizado em 9 abr 2025, 12h57 - Publicado em 9 abr 2025, 12h30

Nos últimos 30 dias, tenho sido privilegiado com visitas a museus de História Natural. Como parte de meu doutorado, é fundamental visitar coleções e analisar espécimes. Claro, além das coleções, quando há tempo vejo o que está em exibição. Um pensamento frequente me ocorre: “o quanto esse animal devia ser magnífico enquanto estava vivo? Queria que fosse possível viajar no tempo!”. Mas para ver um indivíduo de uma espécie extinta é mesmo preciso viajar no tempo? Não poderíamos simplesmente “deextinguir” uma espécie, especialmente aquelas eliminadas nos últimos milhares de anos? Há quem acredite que é possível.

A última empreitada nesse sentido pode agradar aos fãs de Game of Thrones (ou melhor, das “Crônicas de Gelo e Fogo”, antes que um preciosista me ataque), mas quanto à comunidade científica como um todo, é difícil.

A série Game of Thrones, da HBO, foi um dos maiores fenômenos da TV de todos os tempos, apesar de seu final, no mínimo, polêmico. No primeiro episódio, Winter is Coming, o guardião do Norte, Ned Stark, leva seus filhos para testemunhar a execução de um desertor. Na volta para casa, os Starks encontram um cervo (símbolo da Casa Baratheon) e um lobo gigante (Dire Wolf, símbolo dos Starks) mortos. Apesar da hesitação inicial, Ned concede e os filhotes da loba são adotados pelas crianças. Um dos filhotes, que de início passa despercebido, é então encontrado por Jon Snow, “bastardo” de Ned. É um lobo branco, que mais tarde viria a receber o nome de Ghost (Fantasma) e estaria sempre ao lado do protagonista.

O Dire Wolf não é uma criação de George R. R. Martin, autor das “Crônicas de Gelo e Fogo”. O Dire Wolf (Canis dirus) foi um grande canídeo do Pleistoceno, extinto há cerca de 10 mil anos, cujos fósseis foram encontrados em diversos sítios paleontológicos na América do Norte e em diversos locais na América do Sul. O Dire Wolf era semelhante a um grande lobo-cinzento (Canis lupus), porém com o crânio mais largo e robusto. As mandíbulas eram também robustas e tinham dentes maciços. Os dentes carniceiros, em particular, eram extremamente desenvolvidos.

Há pouco, fui pego de surpresa. A revista Time proclamou “O Retorno do Dire Wolf”, e The New Yorker, de modo similar, declarou “O Dire Wolf Está De Volta”. A internet entrou em polvorosa, claro. A princípio fiquei bastante curioso e empolgado. O lide na matéria de The New Yorker, contudo, já diminuiu minhas expectativas:

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“A Colossal, uma startup de genética, deu origem a três filhotes que contêm DNA antigo recuperado dos restos dos ancestrais extintos do animal. Será que o mamute-lanoso é o próximo?”

A Colossal, algumas semanas antes, havia anunciado os seus “camundongos lanosos” (Wooly Mice). Escrevendo para a Nature, Ewen Callway reportou: “Os ‘camundongos lanosos’ editados geneticamente abrigam uma combinação de mutações inspiradas nas do mamute-lanoso (Mammuthus primigenius), além de alterações conhecidas por influenciar o crescimento dos pelos em camundongos”. Houve comoção, mas nada comparável ao anúncio do “Dire Wolf”.

Mas como é que os cientistas da Colossal “trouxeram o Dire Wolf de volta”? Bom, já que a espécie foi extinta há não muito tempo, seus restos fósseis ainda podem conter DNA original. Graças ao material de um dente e um crânio (com respectivas idades estimadas em 13 mil e 72 mil anos), o time foi capaz de obter uma cobertura de cerca de 91% do genoma da espécie extinta. Como esperado, o genoma é extremamente similar ao do lobo-cinzento. Afinal, ambos são canídeos. Com esse material em mãos, os cientistas da Colossal tinham um objetivo bem evidente: modificar o genoma do lobo-cinzento de tal forma que a criatura resultante se assemelhasse mais a um Dire Wolf: maior, cabeça proporcionalmente mais robusta, e uma pelagem mais “fofa” e clara.

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Ou seja, os indivíduos resultantes desse procedimento seriam filhotes que contêm DNA de Dire Wolf, mas não seriam um Dire Wolf propriamente dito. Um trecho bastante revelador da matéria da The New Yorker:

“Os cientistas puderam concluir, com base na variação de genes-chave relacionados à pigmentação, que os lobos gigantes — como Ghost [Fantasma] em Game of Thrones — tinham pelagens muito claras. Mas os genes que determinavam a cor da pelagem apresentavam um problema: eles traziam consigo o risco de cegueira e surdez…. Por isso, o grupo decidiu editar um gene diferente que, quando expresso em cães, também codifica uma pelagem mais clara. Isso pode tornar o Dire Wolf menos autêntico, mas seria melhor para as novas criaturas”. [Ênfase minha]

No New York Times, Carl Zimmer reporta que os cientistas introduziram modificações genéticas de Dire Wolf em 15 genes de lobo-cinzento. Outras fontes falam em 20 modificações genéticas em 14 genes; ainda segundo essas fontes, quinze dessas edições foram derivadas do estudo do genoma Dire Wolf, realizado pela própria Colossal, enquanto cinco dos ajustes genéticos vieram da análise do genoma do lobo-cinzento. Seja como for, os indivíduos resultantes, portanto, têm essencialmente um genoma de lobo-cinzento com no máximo duas dezenas de genes de Dire Wolf.

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Vamos presumir, por hipótese, que os lobos-cinzentos e o Dire Wolf têm um genoma bastante similar ao dos cães, algo bastante razoável. Os cães têm por volta de 20 mil genes. Os lobinhos produzidos pela Colossal têm, na melhor das hipóteses, 15 genes de Dire Wolf. Ou seja, a vasta maioria de genes dos animais produzidos pela Colossal são genes de lobo-cinzento. Claro, os genes não devem ser tão diferentes entre lobo-cinzento e Dire Wolf, mas ainda assim, não dá pra dizer que trouxeram o Dire Wolf de volta. É um exagero tremendo. É propaganda!

Sem entrar muito nos detalhes, um dos primeiros produtos dessa série experimental são células de lobo-cinzento com DNA modificado. O núcleo dessas células foi, então, inserido em óvulos sem núcleo. Foram produzidos 45 óvulos modificados, que se desenvolveram em embriões no ambiente controlado de laboratório. O próximo passo foi inserir esses embriões no útero de duas cadelas. Em cada “barriga de aluguel”, um embrião se desenvolveu com sucesso até o final da gestação. Desse procedimento nasceram Romulus e Remus. Meses depois, o mesmo procedimento resultou no nascimento de Khaleesi (que esperamos não ter um final como o de Daenerys Targaryen na série de TV).

Segundo o representante da Colossal Matt James, os lobos que nasceram são cerca de 20% maiores do que os lobos-cinzentos de sua idade, algo esperado, dado o que sabemos sobre o Dire Wolf. Além disso, como em Fantasma, o pelo é branco e espesso. Os adoráveis lobinhos também ostentam caudas volumosas e um crescimento de pelos em forma de juba ao redor do pescoço. Adoráveis e belos, sem dúvida. Mas Dire Wolf?

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Eu diria que não. Genes não são tudo. Ao passo que condicionam o fenótipo — de forma simplificada, as características de um ser vivo —, nem tudo pode ser reduzido aos genes. Comportamento é um bom exemplo. Esses lobos jamais aprenderão a caçar com seus pais, ou seja lá como fosse que os filhotes aprendiam em seu ambiente original; no sentido mais amplo, considerando tanto o ambiente abiótico quanto biótico, aquele mundo não existe mais. Ainda que aceitássemos o impossível, isto é, que todas as características de uma espécie são redutíveis aos genes, os lobos da Colossal não são nem geneticamente Dire Wolves.

A Colossal não trouxe o Dire Wolf de volta, mas certamente atingiu um de seus principais objetivos: os olhos dos investidores. “Fale bem ou fale mal, mas fale de mim”, como dizem.

*João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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