Um estudo publicado na última quinta-feira no periódico Journal of Vertebrate Paleontology reúne evidências de que humanos alcançaram o continente americano durante a última Era do Gelo e conviveram com mamíferos gigantes que hoje estão extintos.
O trabalho, desenvolvido por pesquisadores das Universidades da Flórida (EUA) e de Copenhagen (Dinamarca), traz novas descobertas para um antigo debate entre cientistas: se os restos de humanos e animais encontrados no início do século XX em Vero Beach, sítio arqueológico da Flórida, são da mesma época.
Saiba mais
ERA DO GELO
Por Era do Gelo ou Era Glacial entende-se todo período geológico em que ocorre significativa diminuição na temperatura da Terra. Mantos de gelo se expandem pelos continentes e glaciações – períodos extremamente frios – atingem a superfície e a atmosfera do planeta. Nos últimos milhões de anos, a Terra viveu várias eras glaciais, ocorrendo a intervalos de 10 mil a 100 mil anos. A última grande era glacial teve seu pico há 25.000 anos e terminou 11.000 anos atrás, aproximadamente.
PLEISTOCENO
O pleistoceno corresponde ao intervalo entre 1,8 milhão e 11.500 anos atrás. Na escala geológica, faz parte do período Quaternário da era Cenozoica. Pássaros e mamíferos gigantes, como mamutes e búfalos, caracterizam essa época. No pleistoceno ocorreram as mais recentes Eras do Gelo
Os pesquisadores analisaram amostras de 24 ossos humanos e 48 fósseis animais da coleção do Museu da Flórida e concluíram que eram todos do final do Pleistoceno, por volta de 13.000 anos atrás.
“O sítio arqueológico de Vero é o único onde há abundância de ossos de seres humanos, não apenas de artefatos, associados a fósseis de animais”, explica a coautora do estudo, Barbara Purdy, professora de antropologia da Universidade da Flórida e curadora de arqueologia do Museu de História Natural da Flórida. “Os cientistas que discutiam no início do século XX a idade dos restos de humanos não queriam acreditar que o homem chegou tão cedo à América.”
A fauna da última Era do Gelo continha desde mamutes e tigres dente-de-sabre, já extintos, até ratos e esquilos que ainda podem ser encontrados na Flórida.
A pouca informação que se tem sobre os primeiros humanos que apareceram na América do Norte é baseada em fragmentos de ossos e artefatos, como pontas de pedras usadas para caçar. “Nós sabemos como eram algumas de suas ferramentas e que eles caçavam animais que hoje estão extintos, mas não sabemos praticamente nada sobre sua vida familiar”, diz Purdy.
Opinião do especialista
Danilo Vicensotto Bernardo
Doutorando do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (USP)
“Megamastofauna é a denominação do grupo de grandes mamíferos que foram extintos há aproximadamente 10.000 anos. Essa fauna particular habitou todo o planeta, e entre seus representantes mais famosos podemos destacar os tigres dente-de-sabre, as preguiças gigantes, os mamutes, os gliptodontes, os mastodontes e os toxodontes. Por ser um grupo cosmopolita, sabemos que o contato entre esses animais e os antigos seres humanos foi inevitável, e quanto há isso há evidências arqueológicas e paleoantropológicas. No entanto, em uma região particular do planeta essa convivência não pode ser facilmente observada: o continente americano”.
“O debate sobre a convivência ou não entre os primeiros americanos e os grandes mamíferos do Pleistoceno deve-se ao fato de o continente americano ter sido ocupado pelo homem tardiamente. Admitir o contato entre humanos e megafauna nas Américas implica em aceitar a ideia de que o homem deve ter chegado ao continente antes de 10.000 anos atrás, no mínimo”.
“Durante suas pesquisas paleontológicas na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), o pioneiro dessa ciência no Brasil, propôs, em 1842, a possibilidade de que o homem americano, especificamente o pré-histórico de Lagoa Santa, tenha sido contemporâneo da megafauna extinta. Sua ideia, revolucionária para a época, enfrentou forte oposição na comunidade arqueológica, principalmente entre os norte-americanos que defendiam uma cronologia mais ‘curta’ para os nativos americanos. No entanto, já no início do século XX, foram encontrados nos Estados Unidos sítios arqueológicos que exibiam claramente evidências favoráveis à associação temporal entre o homem e a megafauna”.
“Hoje, no entanto, muita coisa mudou acerca de nosso conhecimento sobre os primeiros americanos. Sabemos que os padrões de subsistência e as tecnologias líticas (ferramentas feitas com pedras), por exemplo, variavam muito de região para região e que, com datações tão antigas quanto àquelas sugeridas pelo modelo Clóvis [sítio arqueológico do Novo México], o homem já estava presente em todas as regiões do continente, de Norte a Sul, sugerindo, fortemente, que a ocupação do Novo Mundo deva ter ocorrido cerca de 16.000 – 14.000 anos atrás. Esse estudo é mais uma evidência favorável à essa interpretação, de que os humanos conviveram sim com a megafauna extinta e em tempos anteriores àqueles antes pensados como limítrofes à existência do homem da América”.