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Estado brasileiro e ciência: da negação ao marketing

Natália Pasternak e Paulo Almeida falam sobre a falta de definição e planejamento na criação da Autoridade Climática, proposta pelo governo

Por Natalia Pasternak e Paulo Almeida, para o Instituto Questão de Ciência
3 out 2024, 16h15
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  • No Brasil, a publicidade se sobrepõe às necessidades de atender à ciência -
    No Brasil, a publicidade se sobrepõe às necessidades de atender à ciência - (//iStock)

    O atual governo – assim como outros tantos anteriores – parece ter dificuldade de distinguir ideias de propostas. A ideia da autoridade climática foi sugerida por Marina Silva, antes de tornar-se ministra, como uma promessa de campanha, na época da transição do governo Bolsonaro para o que viria a ser o governo do presidente eleito Lula. Chegou-se a especular que a própria Marina viria a desempenhar o papel, dando a impressão de que a “autoridade” seria um cargo no novo governo. Passada a transição, Marina Silva torna-se ministra do Meio Ambiente, e o senso comum diz que a proposta foi “engavetada”. O fato é que nunca houve proposta digna do nome. Apenas uma ideia, um desejo, algo assim como “não seria bacana ter uma autoridade climática”? Para quê, como, com que atribuições e qual o escopo de sua atuação – nada disso foi apresentado ao público ou discutido com a sociedade.

    A definição de o que realmente seria esta autoridade – se uma pessoa, um conselho, um departamento, uma agência – nunca foi apresentada de forma clara. O cidadão brasileiro jamais foi informado de o que tal autoridade iria fazer, quais seriam suas atribuições, responsabilidades, objetivos, orçamento, métricas. Era, e continua sendo, até hoje, uma ideia ao vento, uma frase solta – um apelo emocional positivo, a união de duas palavras fortes, mas, no fim, um slogan vazio de conteúdo.

    Para que uma ideia desabroche em proposta, é preciso haver, no mínimo, atribuições e orçamento definidos, métricas de acompanhamento de resultados e estratégia de atuação. Trabalho e transparência, não retórica e holofotes.

    O Instituto Questão de Ciência fez o trabalho. Em novembro de 2023, apresentou à equipe de transição da área de ciência e tecnologia proposta para a criação da posição de Assessor Especial da Presidência para Assuntos Científicos, nos moldes do posto de Chief Science Adviser (CSA) que existe nos Estados Unidos, Reino Unido, Nova Zelandia, Austrália, Índia e Canadá.

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    A proposta completa está no site do IQC. Detalhamos como funciona o cargo de CSA, quais seriam suas atribuições e responsabilidades, como seria sua atuação transversal entre os ministérios, aconselhando todo o gabinete na formulação e avaliação de políticas publicas que dependem de conhecimento científico. Chegamos a incluir sugestão de orçamento e previsão legislativa para criação de assessorias especiais, o que gera um custo baixo e facilidade do trâmite. Também incluímos sugestão de métricas de acompanhamento logo após a implementação do cargo, por no mínimo 12 meses, para avaliação e validação (ou não) do modelo. Isso é uma proposta. Não é necessário reinventar a roda, basta estudar modelos já existentes.

    Os Estados Unidos contam com um CSA desde a década de 1940. O formato atual foi institucionalizado em 1976. O assessor aconselha diretamente o Presidente. No Reino Unido, país onde a tradição de CSA é mais consolidada, o cargo formalizado de assessor para assuntos científicos existe desde a década de 1960. Cada departamento ou ministério conta, ainda, com um assessor científico específico. Em ambos os países, a necessidade de conectar conhecimento científico com políticas públicas ficou evidente após a Segunda Guerra. Guerras, pandemias e catástrofes naturais costumam despertar sociedades e governos para a necessidade de integrar a ciência ao processo decisório.

    No Reino Unido, durante a pandemia, o assessor Sir Patrick Vallance era uma figura presente ao lado do primeiro-ministro, e falando diretamente com a imprensa e a população.

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    O modelo do CSA não é a única forma de conectar a ciência à tomada de decisões em políticas públicas. Alguns países usam conselhos, convênios com academias de ciência, ou comitês consultivos. No Brasil, a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) é um exemplo de comitê consultivo para assuntos regulatórios, que não tem poder decisório, mas sim um corpo técnico capaz de fazer recomendações baseadas na melhor evidência científica e custo-benefício para incorporar tecnologias de saúde ao SUS.

    Um assessor especial para assuntos científicos poderia aconselhar a autoridade executiva tanto sobre mudança climática quanto sobre outras questões que dependem de ciência nas áreas de educação, saúde, meio ambiente e segurança alimentar. Se o governo acredita que um assessor exclusivo para questões climáticas é necessário, poderia usar o mesmo modelo para criar a tão desejada autoridade climática. Mas o modelo, seja qual for, deve servir à finalidade desejada e mostrar-se adequado às atribuições dadas – e não, a finalidade e as atribuições serem definidas a posteriori, depois que o modelo tiver sido escolhido com base em considerações de marketing eleitoral e conveniência político-partidária, que é o que parece estar acontecendo.

    Uma hora ouve-se que a autoridade climática seria um instituto de pesquisa como o Inpe, ou uma agência independente como a Anvisa, quantos cargos e posições teria, quem seria nomeado como chefe, ignorando completamente o conteúdo e focando apenas no formato. “Autoridade climática”, no momento, é uma placa em busca de uma porta – e ninguém em Brasília parece realmente preocupado em saber para onde, ou para o quê, a porta vai se abrir. O que importa é que a placa fique bem na foto.

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    Especula-se sobre qual ministério deveria abrigar o cargo/comitê/conselho/agência, sem antes estabelecer as definições necessárias, e verificar se há competição ou repetição de competências e funções com agências, institutos e comitês já existentes.

    Qualquer dos esboços hoje à mesa remonta à tríade sequencial de comportamentos que estamos habituados, historicamente, a ver quando o governo é instado a se manifestar sobre assunto que demanda ação urgente: um diagnóstico voluntarista, incompleto e impreciso do problema; um evento-espetáculo de lançamento de um plano de ação carregado de intenções, mas vazio de substância, desprovido de compromissos claros, metas e prazos objetivos. Cria-se uma solução que envolve atacar um problema concreto com soluções abstratas – mais leis, estruturas burocráticas e cargos – em vez de ação.

    Nesse caso específico, há o problema adicional de definir a abrangência da competência de uma autoridade climática. O orçamento deveria garantir a cobertura de toda ação referente à prevenção, mitigação de impacto e ações emergenciais em âmbito nacional? Sua competência suplantaria a de ministérios e secretarias estaduais em assuntos relacionados a meio ambiente e clima? Há possibilidade de judicialização do assunto? Quanto tempo demoraria e quanto custaria colocar uma estrutura dessas de pé, e qual é o custo-benefício frente à simples reorganização de estruturas já existentes?

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    Para além do fato de o Brasil não ter o hábito de fundamentar decisões públicas com boas evidências e métricas de acompanhamento e de não realizar, com a presteza devida, estudos de impacto regulatório, qualquer medida açodada como resposta a um problema urgente tende a criar mais problemas do que soluções. A questão a ser enfrentada e a capacidade do país de atuar não deveriam reduzir-se a espetáculos de mídia mais voltados a produzir desculpas a serem dadas no futuro, quando as consequências do problema, que ficou sem tratamento adequado, se materializarem, do que propostas sólidas.

    No mundo todo, os princípios que regem os principais mecanismos e instâncias oficiais para enfrentamento de mudanças climáticas e temas afins são a independência técnica, ação baseada em evidências, transparência e papel de articulação na integração de políticas. São, em sua maioria, braços de levantamento e publicação de dados, assessoramento técnico e de produção de iniciativas de conciliação entre políticas de diferentes braços do governo. Os esboços que vêm circulando no debate nacional passam ao largo de todos esses eixos.

    Uma estrutura com assessores sérios em clima e meio ambiente – e os há em abundância no Brasil – com autonomia para encaminhar propostas concretas e baseadas em evidência às autoridades já constituídas seria uma solução melhor, mais célere, mais econômica e, principalmente, mais eficaz.

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    A ver se executivo federal quer de fato soluções ou se, mais uma vez, vai se aproveitar de uma oportunidade midiática para construção de imagem sem substância, mostrando que saímos de um governo negacionista para um governo marqueteiro. Para o primeiro, a ciência era inimiga. Para o segundo, fica linda na foto – mas só lá.

    Natalia Pasternak é professora de ciência e políticas publicas na Universidade de Columbia (EUA) e Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC)

    Paulo Almeida é professor de ciência e políticas publicas na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC)

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