Como o coronavírus pode facilitar o retorno de doenças já superadas
Na República Democrática do Congo, por exemplo, o surto de sarampo iniciado em 2019 pode explodir em breve
No dia 26 de março, a Organização Mundial de Saúde recomendou, por meio de um guia publicado em seu site, que fossem temporariamente suspensas as campanhas de vacinação em massa por todo o mundo. O objetivo seria evitar a movimentação gerada por elas. No total, 23 países acataram a recomendação, e outros 16 afirmam estar ponderando sobre o assunto. No entanto, a adesão pode ter um efeito colateral seríssimo, sobretudo nas nações mais pobres: a potencialização de doenças antigas e curáveis, como o sarampo e a poliomielite.
“As campanhas de vacinação em massa têm sido um recurso valioso e complementar, utilizado quando existe a meta de eliminar uma infecção, como ocorre com a poliomielite, ou mesmo a erradicação, tendo como único exemplo a varíola, para citar alguns a nível mundial. Mais recentemente, têm sido usadas também para o controle do sarampo, que teve um reemergência importante em várias partes do mundo”, explicou a VEJA Gerusa Figueiredo, médica epidemiologista e professora da Faculdade de Medicina da USP.
Assim, foi uma decisão dificílima que as organizações mundiais da área tiveram de enfrentar: manter o apoio a campanhas de vacinação em países pouco desenvolvidos e arriscar enfraquecer os esforços contra a Covid-19 ou recomendar a suspensão e facilitar surtos de outros males infecciosos?
A segunda opção é representativa do que tem acontecido na República Democrática do Congo, localizado no centro do continente africano. Desde o começo de 2019, mais de 6 mil pessoas — em sua grande maioria, crianças — morreram de sarampo, que adoeceu mais de 310 mil indivíduos no país durante o mesmo período. Por enquanto, o país tem pouco mais de 200 cidadãos adoecidos pelo novo coronavírus. Embora os casos globais de sarampo (para o qual foi criada uma vacina em 1963) tenham crescido 58% de 2016 para 2018, em grande parte graças aos movimentos antivacinas nos países desenvolvidos e à dificuldade do acesso à vacina nas nações pobres, quem sofre mais com a doença na atualidade são justamente as regiões menos ricas.
O sarampo, assim como o coronavírus, é uma doença pouco letal, mas muito facilmente transmissível. Em nações ricas, ele mata de 3% a 6% dos infectados; nas mais pobres, 30%. Contudo, quando se considera sua transmissibilidade, o assunto é outro. Enquanto uma pessoa com a Covid-19 infecta, em média, outras 2 ou 3, um indivíduo com sarampo pode passar a doença para de 12 a 18. Por isso, para evitar surtos, entre 92% e 95% da população de um país precisa estar imunizada contra a doença. Na República Democrática do Congo, apenas 57% das crianças recebeu ao menos uma dose da vacina (administrada em duas doses).
Mas a nação africana não é a única a ser impactada recentemente pelo sarampo. Em Madagascar, a falta de vacinas provocou uma epidemia em 2018 cujos efeitos são sentidos até hoje. Desde então, houve mais de mil mortes devido à doença no país. Na Ucrânia, grandes quedas na vacinação ocasionaram um surto em 2017. Mais de 115 mil casos de sarampo foram registrados entre esse ano e 2020. É claro que o coronavírus não faz com que o número de casos de sarampo aumente diretamente, mas as demandas por ele geradas podem ainda desviar recursos de outros males, trazendo-os de volta à tona.
Vale lembrar que a corrupção presente em países menos desenvolvidos e as exigências da própria vacina (que, por exemplo, precisa ser mantida entre 2 e 8 graus Celsius) prejudica gravemente a saúde pública desses locais, principalmente em casos de epidemias.
Outra doença que pode ser impulsionada pela pandemia atual é a poliomielite, cuja vacina foi criada em 1953. No ano passado, foram registrados mais de 116 casos da enfermidade no Afeganistão e no Paquistão. Embora possa parecer pouco, o número é quatro vezes maior do que aquele registrado em 2018. Na África, 196 crianças foram paralisadas pela doença no mesmo período. De acordo com especialistas, esse crescimento na quantidade de doentes se deve justamente a um enfraquecimento das campanhas de vacinação contra a pólio.
No dia 24 de março, a Iniciativa Global para a Erradicação da Poliomielite recomendou a suspensão das campanhas atuais de vacinação contra a doença até pelo menos o segundo semestre, reforçando ainda mais a possibilidade de fortalecimento e de novos surtos da pólio. É preciso destacar que, em países pobres, essas campanhas representam a única oportunidade que milhões de crianças têm de acessar vacinas para males que, no mundo desenvolvido, são considerados desprezáveis.
Segundo a diretora de imunização da OMS, Kate O’Brien, espera-se um aumento dos casos de pólio pelo planeta graças à falta de vacinação. Contudo, de acordo com ela, a Organização tem como objetivo final, para depois da pandemia, erradicar a poliomielite.
Estimativas apontam que mais de 13 milhões de jovens perderam o acesso a vacinas de poliomielite, sarampo, HPV, febre amarela, cólera e meningite. A expectativa é de que esse número cresça ainda mais.
A boa notícia: ao que tudo indica, o Brasil não parece estar em risco. Segundo Gerusa, “o país tem um dos melhores programas de imunização do mundo. Ajudará muito também o reconhecimento crescente que a população tem tido em relação ao SUS.”
Em tempos de dúvida, faz bem olhar para o passado e tentar aprender algo. Um bom exemplo pode ser a epidemia de ebola que atingiu a África Ocidental entre 2014 e 2015. Durante essa época, as campanhas de vacinação para outros males foram suspensas. Contudo, passado o surto de ebola, as campanhas foram retomadas e os números de vacinados excedeu as expectativas. Porém, devem ser guardadas as proporções: enquanto o ebola infectou três países cuja população somada aproxima-se dos 25 milhões, o coronavírus atingiu o mundo todo, ou seja, mais de 7 bilhões de pessoas. Seus efeitos provavelmente serão muito mais duradouros do que aqueles do ebola.
Do que, então, podemos ter certeza? Primeiramente, de que as consequências da Covid-19 para a área da saúde podem ser muito mais desastrosas do que se estimava a princípio. Em segundo plano, certamente os países pobres sofrerão muito mais com a volta de doenças tratáveis do que suas contrapartes desenvolvidas. Nas palavras do revolucionário indiano Mahatma Gandhi (1869-1948): “A pobreza é a pior forma de violência.”