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Como a Nasa tem preparado os astronautas para levá-los a Marte

Fazem parte da ação longas estadas no cosmo, como a de Christina Koch, que quebrou o recorde de tempo passado por uma mulher no espaço, 328 dias

Por Sabrina Brito Atualizado em 27 out 2021, 10h50 - Publicado em 14 fev 2020, 06h00

Poucas vezes um sorriso largo de alguém que chegava de uma missão espacial da Nasa significou tantos êxitos como aquele que se viu estampado, no último dia 6, no rosto da astronauta americana Christina Koch. Ao desembarcar no Cazaquistão depois de 328 dias vivendo na Estação Espacial Internacional, a engenheira elétrica de 41 anos, formada pela Universidade Estadual da Carolina do Norte, havia acabado de quebrar o recorde de tempo passado por uma mulher no cosmo. No cômputo geral, quando se levam em conta ambos os sexos, ela se encontra em quinto lugar. O recorde absoluto, de 438 dias, foi estabelecido em 1995 pelo russo Valery Polyakov.

Aquele sorriso de Christina, portanto, guardava, antes de qualquer outra coisa, uma vitória de gênero. Mais do que mera celebridade, a astronauta se transformou no rosto feminino da Nasa. Isso porque a agência espacial americana tem se esforçado para transmitir a ideia de ser mais inclusiva. O que, aliás, se reflete no quadro de funcionários. Enquanto na década de 70, poucos anos depois do pouso na Lua, ocorrido em 1969, 84% dos empregados do órgão eram homens — e as mulheres se restringiam, usualmente, a funções menos prestigiadas —, hoje eles representam 66%, e muitas delas ocupam cargos de comando. “Servir de inspiração é uma honra”, afirmou a astronauta ao pisar no solo terrestre.

Por trás desse sucesso com viés, digamos assim, feminista, o entusiasmo pelos resultados da missão de Christina está ligado à resposta a uma inescapável indagação que surge para o público em geral toda vez que se vê alongar-se a estada de um enviado da Nasa ao espaço: afinal de contas, qual o motivo de manter um ser humano por tanto tempo no cosmo, sobretudo quando se consideram os efeitos drásticos que isso provoca em seu corpo? E mais: por que americanos, e russos, têm repetido tantas vezes esse procedimento, da década de 90 para cá?

Ao longo das mais de 5 000 vezes em que orbitou a Terra, Christina realizou inúmeras experiências relacionadas à botânica, citologia e robótica, entre outros campos do conhecimento. Um dos pontos de interesse foi investigar o efeito da gravidade em vegetais, com o propósito de avaliar como seria possível plantar no espaço para tornar a vida autossustentável no cosmo. O experimento mais relevante, no entanto, foi o que teve o próprio organismo da astronauta como objeto de estudo. Boa parte das pesquisas de laboratório realizadas na estação se deteve nas alterações físicas e mentais causadas pela estada fora da Terra — conhecimento essencial para compreender como seria para um ser humano passar a viver em algum ponto longe, muito longe de seu planeta de origem. Por que se incomodar com isso, uma vez que naves tripuladas jamais ultrapassaram a Lua, que, do ponto de vista da imensidão do universo, é “logo ali”? Exatamente porque a intenção é superar essa fronteira. Os testes com os alimentos, equipamentos, o corpo e o cérebro de Christina servirão como ensaio de preparação da humanidade para um dia colonizar Marte. Uma ambição que, nos planos e promessas da Nasa, não está distante de se concretizar.

O ator Matt Damon
NA FICÇÃO… - O ator Matt Damon, no filme ‘Perdido em Marte’ (2015): o que fazer para sobreviver em terras marcianas (Aidan Monaghan/Twentieth Century Fox/Divulgação)

“Acredito que mandaremos humanos a Marte até a metade da década de 2030”, prometeu o então presidente americano Barack Obama, em 2010, diante de uma multidão reunida no Centro Espacial John F. Kennedy, na Flórida. No ano passado, seu sucessor, Donald Trump, reafirmou a meta. Há a possibilidade de investir o equivalente a 1,5 trilhão de reais no projeto. Todavia, a ambição da Nasa é realizar a missão em conjunto com outras agências espaciais, como a europeia ESA.

A rigor, decolar da Terra e aterrissar em Marte seria a parte menos difícil dessa odisseia no espaço. Até porque isso já foi feito algumas vezes — em 2011, por exemplo, a Nasa enviou ao planeta vizinho a sonda Curiosity. O problema maior seria garantir a sobrevivência dos humanos tanto ao longo da viagem como ao chegar lá.

A sonda 'Curiosity'
…E NA REALIDADE - A sonda ‘Curiosity’, da Nasa: pouso no planeta em 2012 (Caltech/MSSS/NASA/JPL/AFP)

Desde os anos 1960 cientistas se debruçam sobre a questão de como contornar as transformações físicas e mentais provocadas por temporadas no espaço. A lista é longa: visão prejudicada, grande perda de massa óssea e muscular, redução do volume sanguíneo, baixa no sistema imunológico e sinais de depressão (ou mesmo psicopatia), entre diversas outras consequências. Nessas investigações científicas, muitas vezes foram simulados ambientes marcianos típicos, incluindo a construção de cenários.

Nos primeiros anos da década de 2000, por exemplo, a agência americana estabeleceu, no Deserto do Atacama, no Chile, uma estação de testes dessa natureza. Isso porque as condições secas e arenosas daquela região se assemelham às do planeta vermelho. Outro laboratório foi instalado nos EUA, nesse caso em uma área sigilosa, a 20 metros de profundidade, no mar da Flórida. Em uma espécie de Big Brother científico, astronautas passam temporadas no interior de uma cápsula isolada que imita a paisagem marciana.

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A sobrevivência em Marte seria penosa. Os colonos sofreriam até mutações no DNA, devido ao bombardeamento de radiação solar — 25 vezes maior que na Terra, segundo estimam os cientistas. Por isso os telômeros, nome dado às extremidades dos cromossomos, se alongariam, o que levaria à infertilidade e a maiores probabilidades de desenvolver demência e câncer. Quanto maior o tempo em solo marciano, maiores as repercussões para o — admita-se — frágil organismo humano.

Caso seja possível realizar uma viagem de ida e volta ao planeta vizinho, os exploradores só regressarão após três anos. Contudo, o mais provável é que os primeiros colonos não voltem, por causa da inviabilidade de recriar em território marciano as condições para o lançamento de um foguete. A Nasa acredita que os pioneiros construirão bases infláveis, plantações e outras instalações aptas a receber com maior conforto (e segurança) futuros visitantes. Entretanto, a primeira tripulação a se estabelecer deve, em sua totalidade, ser vítima de cânceres fatais — caso não morra de alguma outra complicação. Pergunta incontornável: com tantos senões, por que existe um número tão grande de candidatos a tomar o rumo de Marte? O engenheiro espacial americano Max Fagin, que sonha em participar da façanha, traduziu esse desejo: “Qualquer um visita o oceano. Qualquer um vai a florestas. Eu teria a chance de experimentar o nascer do Sol em Marte. De ver duas luas no céu. Não sentiria falta da vida terrestre, que 7 bilhões de pessoas já encaram”. Há outro motivo, claro: entrar para os livros de história. Com um sorriso largo no rosto — estampado na partida de uma viagem provavelmente sem volta.

Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674

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