Cientistas simulam em deserto de Israel as condições de Marte
A ideia é usar experimentos desse tipo para levar astronautas ao Planeta Vermelho
Até o próximo 31 de outubro, seis astronautas confinados em uma estação marciana farão uma série de testes para identificar, estudar e apontar os desafios de viver no Planeta Vermelho. Nesse período, eles dividirão o exíguo espaço com uma pequena cozinha, beliches de montar e inúmeros aparatos científicos. Cada um tem uma missão especial. A microbiologista Anika Mehlis é encarregada de avaliar as possibilidades de contaminação microbiana. Por sua vez, o supervisor Gernot Groemer mapeará o território em torno da estação, usando para isso drones que funcionam sem GPS e veículos autônomos movidos a energia eólica e solar. Sair para o ambiente externo é uma tortura. O traje espacial prateado pesa cerca de 50 quilos e leva de duas a três horas para ser vestido. As cenas descritas parecem saídas da ficção científica — como se sabe, nenhum humano jamais pisou em Marte —, mas são, a seu modo, reais.
A tal estação marciana fica na verdade no Deserto de Neguev, no sul de Israel, no meio de uma cratera com 40 quilômetros de extensão e 500 metros de profundidade. O lugar possui características tão singulares em termos de aridez, geologia e isolamento que o Fórum Espacial Austríaco e a Agência Espacial Israelense decidiram usá-lo para similar as condições de vida em Marte. Não é uma experiência única. Em 2015, uma missão foi estabelecida pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, no estado americano de Utah com intenções semelhantes. Durante a execução do empreendimento, seis pessoas tiveram de viver em uma modesta construção cilíndrica de dois andares, obedecer a uma agenda rígida que envolvia a coleta diária de amostras do solo e resolver questões prosaicas, como tomar banho com suprimento limitado de água. Havaí e Houston, também nos Estados Unidos, já foram palco de experiências similares.
Iniciativas desse tipo deverão se tornar cada vez mais comuns por uma simples razão: a Nasa considera enviar uma primeira missão tripulada a Marte na década de 2030. Elon Musk, o visionário dono da empresa de carros autônomos Tesla e da companhia de foguetes SpaceX, declarou que suas naves pousarão no Planeta Vermelho antes disso, e talvez com astronautas de carne e osso. Por que Marte? Grande parte do interesse se deve a sua longa história evolutiva. Há aproximadamente 3 bilhões de anos, Marte possuía uma atmosfera semelhante à da Terra, inclusive com abundância de água em sua superfície. Em teoria, o cenário criaria as condições mínimas para que a vida como a conhecemos pudesse surgir no planeta. Estudá-lo, portanto, significa responder a uma das perguntas mais desafiadoras para a ciência: já tivemos companhia no vasto universo? Certamente Marte não foi o lar de seres bípedes e pensantes parecidos com os terráqueos, mas os pesquisadores já encontraram indícios de que microrganismos posam ter vivido por lá em tempos remotos.
Marte exerce antigo fascínio. Por volta de 3000 antes de Cristo, os sumérios relataram os seus movimentos e o seu intenso brilho. No século IV antes de Cristo, Aristóteles percebeu que Marte desaparecia por trás da Lua, indicando que ele está mais longe da Terra do que o satélite. Em 1610, o italiano Galileu Galilei foi o primeiro a observar o planeta por meio de um telescópio, enquanto o astrônomo holandês Christiaan Huygens desenhou, em 1665, um mapa que exibia características da superfície de Marte. Agora, as viagens espaciais e o desenvolvimento tecnológico deverão, enfim, desvendar os segredos ocultos em solo marciano. “Desde o momento em que o Homo sapiens deixou a África em busca de mais recursos ou quando se lançou nas grandes navegações pelos oceanos, a humanidade sempre rumou em direção ao desconhecido”, diz Douglas Galante, do Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia da Universidade de São Paulo. “O espaço representa a fronteira final e guarda informações únicas sobre o universo e a vida.”
O Brasil, quem diria, já marcou presença no Planeta Vermelho. Em 1997, a música Coisinha do Pai, escrita por Jorge Aragão, Almir Guineto e Luís Carlos e imortalizada na voz de Beth Carvalho, foi usada para “acordar” o robô Sojourner, que fazia parte da missão Mars Pathfinder, criada pela Nasa para explorar a superfície do planeta e cujo treinamento se deu no Deserto do Atacama, no Chile. Em dada ocasião, graças à engenheira carioca e funcionária da Nasa Jacqueline Lyra, a canção de despertar escolhida foi o samba brasileiro. Marte nunca esteve tão presente na vida dos humanos. Agora, a questão não é mais saber se o homem será capaz de pisar em solo marciano, mas quando.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762