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Cavalos: as vítimas esquecidas da I Guerra Mundial

No centenário do conflito, especialistas relembram que cerca de 8 milhões de cavalos foram dizimados e explicam as consequências desse massacre para a sociedade atual

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h47 - Publicado em 23 fev 2014, 08h31
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  • Ao fim dos quatro anos da guerra que começou em 1914, o mundo contabilizava suas vítimas: 15 milhões de mortos e mais 20 milhões de feridos. Agora, no centenário da I Guerra Mundial, os pesquisadores voltam os olhos para as vítimas esquecidas do conflito. Além da carnificina humana, as batalhas que se espalharam pela Europa dizimaram cerca de 8 milhões de cavalos, a principal força animal usada na agricultura na época. A cada dois homens atingidos por tiros, bombas e gases letais, um cavalo morreu.

    Só os exércitos franceses utilizaram entre 1,5 milhão e 1,8 milhão de equinos, enquanto a Inglaterra levou para os campos de batalha outros 1,2 milhões e a Alemanha, 1 milhão. Os demais países, estimam historiadores, somavam 4 milhões de animais. Oitenta por cento dos cavalos franceses morreram em campo, 35% deles abatidos por tiros inimigos, destino parecido com os das demais tropas. A maior parte morria de fome e exaustão, sacrificada ou abandonada nas longas travessias entre os campos de batalha.

    Em 1918, os poucos sobreviventes foram vendidos para os raros fazendeiros que tentavam retomar suas vidas. Os novos proprietários reclamavam que os cavalos estavam fracos, cansados, magros e pouco ajudavam nas plantações. Sem a ajuda desses bichos, a agricultura europeia recebeu um golpe fatal. Nos anos seguintes, o continente amargou uma grande fome. Na Alemanha, a falta de animais, somada ao bloqueio das nações aliadas, matou 763 000 pessoas, de acordo com estimativas oficiais. Na Rússia, cerca de 5 milhões de pessoas foram atingidas pela grande fome de 1921.

    Mobilização equina – Os cavalos começaram a ser recrutados no início da guerra, junto com os soldados. Na França, uma lei de 1877 permitia que o governo tomasse os animais para servir em conflitos. Assim, em agosto de 1914, 730 000 cavalos franceses, um em cada quatro no país, marcharam para as trincheiras. A França contou ainda com 20 000 animais vindos da Argélia e mais 30 000 importados de outros lugares. “No campo, desapareceram, ao mesmo tempo, homens e cavalos”, afirma a historiadora Gene Tempest, pesquisadora da Universidade Yale, nos Estados Unidos. “Isso fez com que a agricultura ficasse paralisada em 1914: a partida dessas duas forças de trabalho foi difícil de superar.”

    Gene conduziu um estudo de quatro anos sobre a presença dos cavalos nos exércitos britânicos e franceses na I Guerra Mundial. Vasculhou arquivos dos dois países e descobriu que os bichos eram muito mais numerosos nas batalhas do que se imaginava. “Devemos pensar na I Guerra Mundial como um conflito equestre. Sua força tornou possível a vida e os combates diários. Cavalos foram os principais motores da guerra”, afirma.

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    No início dos combates, os equinos retirados das fazendas, indústrias e pequenos sítios eram colocados nas linhas de frente – uma herança das guerras do século 19, apoiadas em colunas poderosas de cavaleiros. Com o desenvolvimento de armamentos mais precisos, os generais perceberam que os cavalos pouco ajudavam no front. Por serem grandes demais, tornavam-se alvos fáceis para tiros e bombas.

    A cavalaria seria importante até o fim do conflito em batalhas no Oriente Médio e no leste da Europa. Mas, no oeste do continente, seu papel essencial era o de meio de transporte. Noventa por cento dos animais eram usados para carregar os canhões até a linha de tiro, transportar soldados, alimentos, armas, munições e correspondências. Eles carregavam os mortos após as batalhas e serviam como veículo silencioso para espionar tropas inimigas. Registros de combates, como fotos e diários, mostram que são poucos os acampamentos sem a presença de cavalos. “É um mito imaginar que, como a cavalaria desapareceu, os cavalos também estiveram ausente das guerras. Eles permaneceram absolutamente essenciais para todas as batalhas da primeira metade do século XX”, diz Gene.

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    A razão da larga utilização desses animais é que eles se davam muito melhor em ambientes frios e lamacentos – como as trincheiras – do que carros e caminhões. Na década de 1910, os cavalos eram mais disponíveis e baratos do que os motores. Além disso, a maior parte dos homens que lutaram na guerra estava acostumada a conduzir cavalos, enquanto eram raros os que sabiam dirigir caminhões e tanques.

    Morte no front – Estar longe das balas e minas, entretanto, não evitou o massacre dos animais. Como os soldados, eles morreram aos milhões. O serviço veterinário de guerra francês contabilizou, durante os quatro anos de guerra, 6,5 milhões de atendimentos aos cavalos – o que significa que cada um entrou nas enfermarias em torno de sete vezes. Para substituir essa força de trabalho tirada de circulação, os exércitos organizavam missões para a compra de animais ao redor do mundo. Os britânicos importaram 700 000 dos americanos e 5 000 dos uruguaios. A França comprou 500 000 dos Estados Unidos e outros 70 000 da Argentina. “No início do conflito, França e Inglaterra esperavam adquirir ainda mais dos países da América do Sul. No entanto, a biologia dos animais interveio a seu favor. Eles não suportavam muito bem a mudança de estação e a viagem era mais longa que dos Estados Unidos para a Europa”, explica Gene.

    A França gastou 139 milhões de dólares no comércio equino com os Estados Unidos, enquanto os ingleses pagaram 337,5 milhões de dólares. Comparado ao preço dos animais europeus, os americanos eram bem mais baratos. “Era politicamente menos custoso comprar animais de fora do que pedir à população europeia que sacrificasse os seus”, diz a historiadora.

    O número poderia ter sido maior, se os cavalos importados não fossem, em sua maioria, considerados selvagens pelos europeus. Relatos de soldados franceses mostram que era preciso domar os animais e ensiná-los a enfrentar os horrores da guerra antes que eles pudessem ser usados.

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    Além do número de bichos que diminuía, as tropas precisaram lidar ainda com outro problema: a alimentação. Em 1917, eram necessárias 3 750 toneladas de aveia diárias para suprir as necessidades dos animais. Desse total, 70% vinham dos Estados Unidos, que diminuíram as exportações devido ao alto preço do frete. Ver os cavalos famintos, sem forças para os combates e, muitas vezes, morrendo de inanição, significava um forte abalo emocional para os soldados. Para alguns, a perda dos animais inocentes era um trauma a mais, somado à morte inútil de milhões de companheiros entre balas, minas e o arame farpado que cobria as trincheiras.

    Sociedade de proteção – Os séculos XVIII e XIX viram surgir a ligação cada vez mais forte do homem com seus animais. No início do século XX, a violência contra os bichos passou a ser moralmente reprovável – se um homem era capaz de atrocidades contra animais ele, provavelmente, teria uma conduta reprovável também com outros homens. Em 1824, foi fundada na Inglaterra a Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade aos Animais (RSPCA) e, na França, a primeira sociedade protetora é de 1846. Seus cuidados se estendem, principalmente, a cavalos e cachorros – os mais próximos aos seres humanos. “Os homens da época atribuíam qualidades humanas aos animais, atitude historicamente reforçada por fábulas e contos europeus. Aos poucos, eles foram se antropomorfizando”, afirma Damien Baldin, historiador francês e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Ehess), em Paris, que estuda o massacre de animais em batalhas na primeira metade do século XX.

    É nesse contexto que a guerra explode, em 1914. Homens e cavalos são recrutados conjuntamente e sua presença no front contribui ainda mais para sua humanização – os bichos eram vistos como soldados de outra categoria. Durante as batalhas, são as sociedades de apoio animal que cuidam dos cavalos. Elas levantam recursos para os serviços veterinários nos acampamentos e instituições constroem seus próprios hospitais no front. Durante os quatro anos do conflito, 250 000 libras são enviadas pela RSPCA para o tratamento de animais. Em 1916, o secretário de guerra dos Estados Unidos solicitou à American Humaine Association ajuda para os bichos feridos. Foi o embrião da Red Star Animal Emergency Service americana que, até hoje, cuida de animais vítimas de desastres.

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    Moral abalada – Para os soldados, a visão dos cadáveres dos cavalos, grandes e malcheirosos, causava um impacto profundo. Afinal, esses bichos acompanhavam a maior parte dos homens em tempos de paz, nas cidades ou no campo.

    “Ele era o animal considerado mais parecido com o ser humano, além de o mais numeroso nos acampamentos e próximo dos soldados. Os soldados da I Guerra conheciam bem seus cavalos. Nas batalhas, cavalos e cavaleiros formavam um só e, por todos esses motivos, perder o animal era particularmente doloroso”, explica Baldin.

    Relatos de psiquiatras militares mostram que ver um companheiro morrer – mesmo de quatro patas – era uma agressão para o equilíbrio psíquico dos combatentes, que podia levar à revolta, ao horror e à indignação. Além do sentimento de dor, a morte dos cavalos se tornou, para muitos soldados, um meio de exprimir o sofrimento vivenciado nas trincheiras. “Nos testemunhos de combatentes, descrever a dor da perda de um animal era uma forma indireta de expor a angústia pelas mortes humanas”, explica Baldin. “Há sempre uma transposição entre bichos e humanos.”

    Legado equino – Ao fim da guerra, o quase desaparecimento dos cavalos da Europa foi um dos fatores que contribuiu para a grande fome que se instalou na região. “Há uma correlação direta entre a desmobilização de setores como a indústria e agricultura, feita pelo esforço conjunto de homens e cavalos, e a crise de abastecimento europeu”, afirma o historiador Rodrigo Zagni, coordenador do grupo de pesquisa Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Cavalos “reformados” foram vendidos a famílias que tentavam voltar à rotina depois do massacre. Em muitas regiões, a retomada econômica teve o apoio dos bichos que, mesmo cansados e pouco produtivos, eram valiosos para o trabalho nas fazendas.

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    No norte da França, que havia sido ocupada por alemães, muitos camponeses reclamavam que os inimigos haviam destruído intencionalmente algumas raças equinas. A suposição alimentou ainda mais o ódio entre as duas nações – em um de seus itens, o Tratado de Versalhes instituía que os alemães restituíssem alguns garanhões aos países vencedores.

    Ao longo do século XX e XXI, diversos monumentos foram construídos para lembrar os serviços prestados pelos animais no front. Na França, assim como existem os monumentos pelos mortos nas batalhas, há, na cidade de Saumur, uma placa para glorificar os serviços dos 1,2 milhões de cavalos que sucumbiram durante a I Guerra Mundial. Em 2004, os ingleses erigiram um monumento no Hyde Park, em Londres, em homenagem aos animais de guerra.

    O conflito alimentou ainda mais a ligação entre homens e seus animais e serviu como modelo para as máquinas que viriam a substituir os cavalos nos combates posteriores. Atualmente, tanques, aviões e sofisticados computadores ampliam as capacidades humanas com mais força, resistência e velocidade – da mesma maneira que os cavalos no início do século XX. As modernas táticas de guerra perpetuam o princípio da expansão do poder humano em outros equipamentos. “A máquina é o novo cavalo de guerra”, diz Baldin.

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