Tem ar de coisa antiga, dado iluminar o passado remoto da Terra e os segredos de espécies vegetais e animais já extintas, mas há novidade em estado bruto: pesquisadores brasileiros despontam, hoje, no panteão da paleontologia. É resultado do casamento do solo fértil, em bacias sedimentares, e ciência de excelência, finalmente respeitada internacionalmente. A estrela em ascensão é Antônio Álamo Feitosa Saraiva, professor da Universidade Regional do Cariri, no Ceará. Ele acaba de receber o prestigiadíssimo prêmio Morris F. Skinner, concedido por suas investigações na Bacia do Araripe, uma região agora conhecida globalmente pela diversidade de fósseis, plantas, insetos e até raros dinossauros, como o pterossauro voador Tapejara navigans. “Nunca, nem em meus sonhos mais ousados, imaginei ser escolhido para receber uma honraria deste tamanho”, disse a VEJA.
Para além das contribuições científicas, aliás, Saraiva ganhou notoriedade pela luta contra o tráfico internacional de fósseis. Em Santana do Cariri, ele foi fundamental na criação do Museu Plácido Cidade Nuvens, onde está depositado o Ubirajara, resto de um pequeno dinossauro encontrado na região em 1995. Ele havia sido surrupiado e levado para a Alemanha. Acabou sendo devolvido no ano passado.
Saraiva não é a única estrela do momento. Outro trabalho que vem alcançando repercussão internacional é o de Daniel Sedorko, especialista em invertebrados do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que revelou a existência de tocas deixadas no caminho por bichos pré-históricos em rochas da era paleozoica. Ganharam destaque ainda fora do Brasil as três espécies de dinossauros — o Pampadromaeus, o Bagualosaurus e o Nhandumirim — identificadas por um grupo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2021, e reconhecidas como as mais ancestrais catalogadas. “A pesquisa que nós fazemos se compara à dos centros de estudo mais avançados do mundo”, diz o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, professor titular da UFRJ. “Estamos em pé de igualdade com europeus, americanos e chineses quando se trata de qualidade.”
As atuais escavações funcionam como aceno, quase homenagem, à atividade heroica, e nem sempre reverenciada, dos pioneiros, tanto da paleontologia quanto da arqueologia, esta debruçada em vestígios de seres humanos. Lembre-se, a puxar a linha do tempo da memória, do Staurikosaurus pricei, dinossauro escavado também no Rio Grande do Sul, na década de 1930, e que conquistaria fama global. Depois, o esforço de Niède Guidon na Serra da Capivara, no Piauí, no final dos anos 1970 — em linda aventura quixotesca —, que ajudou a criar um centro de visitação turística e desafiar, por meio de pesquisa (ainda contestada, porém), a chamada Teoria de Clóvis, que data o povoamento da América de cerca de 12 000 anos atrás, pela travessia do Estreito de Bering. Segundo Guidon, o Homo sapiens teria chegado ao continente há pelo menos 100 000 anos, vindo da África. Despontou, depois, Walter Neves, da USP, o pai de Luzia, o crânio humano de 11 000 anos, o mais antigo até agora encontrado nas Américas, que teria pertencido a um extinto povo de caçadores-coletores da região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte.
Os cientistas de agora são, portanto, filhos daquela geração primeva que cavou fundo, com um olho lá atrás e outro no futuro. Atualmente, há sítios sendo descobertos de norte a sul do país, além do magnífico uso de recursos de DNA ancestral para lidar com hipóteses surpreendentes. “Existem muitas investigações inéditas”, diz André Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
Como resultado do profissionalismo da turma brasileira, as portas estão sendo abertas para além das fronteiras — constatação da seriedade e confiança. Não por acaso, um grupo liderado por Neves e Strauss, atrelados a outros pesquisadores daqui, esteve recentemente na região da Garganta do Varghis, nos Montes Cárpatos, na Romênia, atrás de um santo graal cobiçadíssimo, em um dos mais interessantes levantamentos em curso: a busca de sinais esqueletais dos últimos neandertais e dos primeiros sapiens, à procura de resposta para uma pergunta que não quer calar: em que momento, e de que forma, os grupos hominídeos se tornaram um só e, então, chegamos à humanidade capaz de fazer poesia e provocar guerras? Apesar de todos esses avanços, os pesquisadores seguem enfrentando no Brasil falta de recursos e de dinheiro. O cenário já foi pior, mas é preciso seguir evoluindo, pois há ainda um túnel de histórias escondidas.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914