Em 1999, o físico brasileiro Cesar Lattes (1924-2005) recebeu do então ministro da Ciência e Tecnologia, Luiz Carlos Bresser-Pereira, uma homenagem singela para sua estatura como cientista de fama internacional. Bresser-Pereira escolheu Lattes como patrono da recém-projetada plataforma acadêmica sobre pesquisadores — o Currículo Lattes —, ferramenta que se revelaria fundamental para o intercâmbio científico no Brasil e em outros países da América Latina. Seu histórico tinha lastro de sobra para aquele escaninho: ele comprovou a existência do méson pi, uma partícula que ajudou a explicar melhor o funcionamento interno do átomo, e teve papel decisivo na criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), crucial no desenvolvimento da disciplina no país. Muitas vezes esquecido e subestimado, esse personagem fascinante ganhou agora uma nova e extensa biografia que ilumina aspectos pouco conhecidos de sua vida pessoal e acadêmica.
Escrito pelos jornalistas Marta Góes e Tato Coutinho, Cesar Lattes — Uma Vida, que sai no início de dezembro pela editora Record, foi uma encomenda da família do físico, mas dificilmente ganhará a pecha de livro chapa-branca. A dupla de autores foi rigorosa tanto na busca de elementos que compusessem um retrato mais completo do cientista quanto no empenho em não deixar o leitor desamparado na hora de explicar conceitos complexos — para isso, inclusive, eles tiveram a colaboração de dois historiadores especialistas, Heráclio Tavares e Cássio Leite. Marta e Coutinho descobriram, como informação vital, que Lattes sofria de bipolaridade, um transtorno que o acompanhou por toda a existência e moldou sua trajetória de forma singular e marcante. “Ele construiu uma carreira brilhante e ajudou a criar instituições de pesquisa relevantes no Brasil, tudo isso enquanto lidava com o sofrimento excruciante causado por sua condição psicológica”, diz Coutinho.
Lattes começou cedo. Com apenas 23 anos, ele teve a ideia de expor chapas fotográficas modificadas à radiação cósmica no Monte Chacaltaya, na Bolívia, levando à descoberta do méson pi. A revelação, fundamental para a física de partículas, lhe rendeu reconhecimento global e o aproximou de grandes nomes dos laboratórios, como o físico dinamarquês Niels Bohr, famoso por suas contribuições para a compreensão da estrutura atômica e da mecânica quântica. No entanto, apesar de sua contribuição crucial, o brasileiro foi preterido no Prêmio Nobel de Física de 1950, concedido exclusivamente ao britânico Cecil Powell, seu orientador na Universidade de Bristol. A obra, aliás, explora a relação complexa entre Lattes e Powell, revelando que, apesar da colaboração frutífera, não havia real proximidade entre eles. “A história do Nobel, vista de hoje, mostra que não houve perseguição pessoal contra o Lattes”, diz Marta. “O Prêmio Nobel, reflexo das relações mundiais, tendia a olhar para os grandes centros de pesquisa, privilegiando instituições e pesquisadores mais famosos.”
É interessante, dada as imensas dificuldades que o cercaram, o momento da criação do CBPF. Impulsionado pelo ideal de desenvolver a pesquisa no Brasil, o físico abriu mão de uma carreira promissora no exterior para se dedicar à construção da instituição, enfrentando inúmeros desafios, desde a falta de recursos e apoio governamental até as complexas relações políticas da época. “Ele poderia ter ficado nos Estados Unidos, buscando o Nobel, mas preferiu voltar ao Brasil e ajudar a desenvolver a ciência no país”, afirma Marta. “Ele se tornou, a partir daí, não só um grande cientista, mas também um grande brasileiro.” Entre outros revezes, é marcante o “escândalo do ciclotron”, episódio em que foi acusado de desvio das verbas para a construção do acelerador de partículas em Niterói (RJ), algo que o abalou profundamente e provocou um quadro de depressão severa. A acusação acabou sendo particularmente humilhante para ele, filho e neto de banqueiros, e o levou a sair do país por três anos.
Lattes surge nesse perfil alentado de forma multifacetada, um cientista genial que, além de suas ideias para a física, era um professor nato e um homem com grande senso de humor no trato pessoal. O livro narra episódios divertidos, como sua relação com o compositor Vinicius de Moraes e o humorista Millôr Fernandes, que o visitaram em Berkeley, nos EUA, apenas para celebrar a produção artificial do méson pi, a partícula subatômica que havia descoberto. “Lattes inspirou e formou gerações de físicos brasileiros como pesquisador e educador”, diz o físico Nelson Studart Filho, coordenador da recém-inaugurada Ilum Escola de Ciência.
O físico brasileiro surge, no final das contas, como um profissional maior do que sua fama conseguia abarcar, ao menos até agora. Lattes, de modo algo silencioso, inspirou físicos e cientistas ao enfrentar desafios, incluindo o preconceito em relação à bipolaridade, e nunca desistiu de seus objetivos maiores. Sua história de luta e superação, agora devidamente iluminada, é retrato de um país atavicamente avesso às pessoas e projetos que fogem do trivial.
Colaborou Luiz Paulo Souza
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920