Ao longo das últimas décadas, o avanço da microbiologia e dos microscópios eletrônicos — milhares de vezes mais potentes do que os convencionais — abriu as portas de um mundo antes invisível a olho nu, proporcionando descobertas inquietantes, inclusive o fato incontestável de que há microrganismos praticamente em todo lugar: em casa, nas escadas, elevadores, livros, louça e, acima de tudo, no corpo humano. A pele e o intestino, por exemplo, são o lar de trilhões deles. Conclui-se então que existam também em obras de arte milhares de minúsculos seres, vivos ou mortos, que podem contar a história de onde essas obras estiveram e por que mãos passaram. O alvo do mais novo estudo científico são os esboços de um dos maiores gênios da humanidade: Leonardo da Vinci.
Morto há mais de 500 anos, Da Vinci dispensa apresentações. Foi pintor, arquiteto, engenheiro e matemático, para citar apenas alguns de seus talentos. Projetou máquinas voadoras, tanque de guerra, traje de mergulho e deixou para a posteridade desenhos e pinturas de valor inestimável. Por isso, foi com a garantia de que nenhum dano seria causado, que uma equipe de pesquisadores austríacos e italianos recebeu de bibliotecas de Roma e Turim sete desenhos do mestre da Renascença, incluindo o famoso autorretrato Homem em Giz Vermelho. O objetivo dos cientistas é colher microrganismos da superfície dos esboços para decifrar parte da história viva deles. “Queremos criar um bioarquivo que possa ser usado para comparações no futuro”, disse a VEJA Guadalupe Piñar, microbiologista da Universidade de Viena e líder do projeto em andamento. Além de fazer uma viagem ao passado por meio da investigação microscópica, o trabalho permitirá entender os riscos de contaminação a que estão expostas outras obras de arte.
Os pesquisadores iniciaram o estudo passando por cima do papel membranas estéreis, compostas de nitrato de celulose, e depois utilizando tubos de sucção suave para coletar microrganismos sem de fato tocar os desenhos, evitando assim o risco de contágio — evidentemente, retirar qualquer pedaço como amostra, por menor que seja, está fora de cogitação. A técnica inovadora foi desenvolvida pela Oxford Nanopore Technologies, empresa britânica que também fabrica o aparelho capaz de sequenciar o material genético de bactérias e fungos, mesmo com uma pequena quantidade de amostras. Todo o equipamento ainda cabe no bolso, facilitando sua utilização profissional.
A variedade encontrada nos desenhos de Da Vinci é impressionante. São bactérias provenientes da pele humana, deixadas nos desenhos após o toque de centenas de mãos em mais de meio milênio. As amostras revelaram a presença da Moraxella osloensis, cuja ação exala o mau cheiro da roupa suja, e de velhas conhecidas do dia a dia, Salmonella e E. coli, responsáveis por infecções intestinais, muitas vezes graves — aparentemente, apreciadores de arte do passado, pelo menos alguns deles, não tinham a higiene impecável que se esperaria deles.
Além disso, foram encontradas bactérias vindas das entranhas de moscas, indicando que os esboços ficaram vulneráveis a insetos em algum momento de sua existência. Não há dúvida, porém, de que a contaminação seja anterior às modernas técnicas de acondicionamento implementadas por bibliotecas e museus a partir da segunda metade do século XX. Embora em menor escala, também estavam na coleta fungos como Aspergillus, cujo mofo pode até mesmo matar se inalado, e Penicillium, de onde deriva a penicilina, primeiro antibiótico produzido em massa.
A predominância de bactérias sobre fungos foi, de certa forma, uma surpresa para os pesquisadores, revela Pinãr: “Até agora, pensava-se que os principais colonizadores de papel eram os fungos, que têm mais afinidade com a celulose”. Eles costumam provocar aquelas manchas amarronzadas em livros, e a presença de um fungo específico, do tipo Alternaria, é a grande preocupação dos conservadores, pois ele pode arruinar o papel em poucos anos. Essa é a mensagem que os cientistas do projeto querem passar: é vital conhecer o risco microbiano a fim de ajustar as condições de armazenamento de obras de arte, respeitando parâmetros precisos de temperatura, umidade e limpeza do ar, de forma que não se permita que microrganismos germinem e proliferem, Trata-se da preservação de patrimônio histórico da humanidade.
É de esperar que as pessoas perguntem se algo do DNA encontrado pertenceria ao próprio Leonardo da Vinci. Nunca será possível saber, uma vez que os trabalhos foram recorrentemente manuseados ao longo da história. Além do mais, o objetivo do sequenciamento não é determinar se os microrganismos estão vivos ou mortos, mas apenas saber quais estão presentes. Guardados em ambientes esterilizados, os trabalhos do gênio que ajudou a humanidade a sair da Idade das Trevas estão protegidos da proliferação de fungos devastadores. Porém, se algum dia a conservação for negligenciada, esses e outros tesouros artísticos serão perdidos. Hoje, assim como há 500 anos, ameaças microscópicas pairam no ar. Só não é possível vê-las.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716