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A agropecuária industrial é o motor do declínio da natureza, diz ativista

Em novo livro, o britânico Philip Lymbery alerta que, no ritmo atual de produção e destruição ambiental, só teremos 60 anos de cultivos pela frente

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 21 dez 2023, 09h04

O título e as mensagens de As Últimas Colheitas, recém-publicado pela editora nVersos, soam apocalípticos. Mas essa não deixa de ser a intenção do autor, Philip Lymbery. Para evitar que essa profecia assombrada pelas mudanças climáticas e ambientais se cumpra, porém, o naturalista e ativista inglês tem uma prescrição: rever o modelo de produção e consumo alimentar quanto antes.

Lymbery é uma das principais vozes em defesa dos direitos e do bem-estar animal. Liderando a Compassion in World Farming, esteve por trás de conquistas como a proibição de tratamentos e confinamentos cruéis a vacas, porcos e galinhas na Europa, inspiração para o restante do mundo.

Em sua última obra, sem se desligar de sua causa mater, ele dá um passo além e denuncia como o sistema agropecuário intensivo atual está destruindo a natureza e insuflando o aquecimento global.

O autor se pauta numa previsão de estudiosos, respaldada pela Organização das Nações Unidas (ONU), de que, se o ritmo de produção e devastação para fins agrícolas e pecuários continuar como está, teremos apenas 60 anos de colheitas pela frente. A culpa estaria na erosão contínua do solo, resultado de um modelo predatório que abocanha cada vez mais terra selvagem (caso da Floresta Amazônica brasileira) para plantar soja e cereais a fim de alimentar uma população gigantesca de animais de criação para abate e consumo.

Munido de vastos dados científicos, o ativista convoca toda a sociedade a rever e a abandonar esse modus operandi. Algo que, em sua visão, seria possível sem desguarnecer o fornecimento de alimentos para bilhões de bocas pelo planeta. A saída, ele argumenta em As Últimas Colheitas, passa por adotar a agricultura regenerativa, que respeita o ambiente e a vida selvagem, deixar os animais livres nas fazendas, direcionar a maior parte da produção de grãos e outros alimentos para os seres humanos e diminuir consideravelmente o consumo de fontes de proteína animal na rotina.

Uma transformação radical (e urgente) que demanda a participação de governos, entidades globais, empresas, produtores e consumidores. Deixar de ouvir esse apelo pode significar um futuro mais sombrio. Confira a entrevista na íntegra com o autor.

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As últimas colheitas

Por que é impossível falar de aquecimento global e de mudanças climáticas sem falar de bem-estar animal?

As crises ambiental e climática e o bem-estar animal estão interligados porque um dos principais impulsionadores do problema é a pecuária industrial. Nesse modelo, os animais ficam enjaulados, amontoados ou confinados em enormes instalações semelhantes a fábricas ou armazéns que estão o mais distantes possível daquela imagem tradicional de uma fazenda.

A pecuária industrial é uma importante fonte de emissão de gases do efeito de estufa e é o maior motor do declínio da vida selvagem em todo o mundo, sem falar no fato de ser a principal causa de crueldade contra os animais. Retirar os bichos dos pastos e colocá-los nesse sistema de exploração industrial pode parecer uma boa ideia pela poupança de espaço, mas são necessárias vastas áreas de terra para cultivar os cereais e a soja que irão alimentá-los. A plantação voltada à produção de ração geralmente é feita com pesticidas químicos e fertilizantes que contribuem para a destruição do solo, das florestas e da vida selvagem.

É por isso que a ONU alerta: se continuarmos nesse ritmo, só nos restam 60 anos antes que os solos aptos a cultivo no mundo desapareçam. Sem solo, sem comida. Fim de jogo.

O senhor acredita que as grandes empresas do setor agropecuário acordaram para essas questões e estão mobilizadas em transformar suas práticas?

Confrontada com um futuro tão sombrio, a pecuária industrial, ou Big Ag, como é frequentemente chamada, está tentando fazer pequenas mudanças e apresentar-se sob uma luz melhor, inclusive se valendo de termos como “intensificação sustentável”. Mas a realidade é que, sem uma transformação fundamental, uma mudança em direção a uma agricultura regenerativa genuinamente amiga da natureza, as nossas crises ambientais só irão se aprofundar.

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phlip-lymbery
O autor de ‘As Últimas Colheitas’ (Foto: Richard Dunwoody/Reprodução)

Quais seriam os principais obstáculos para implantar esse modelo de agricultura regenerativa, que respeita a natureza?

Precisamos urgentemente de um novo despertar para os animais, as pessoas e o planeta. A grande questão é: como chegaremos lá e rápido? A resposta reside em todos nós desempenhando um papel: governos, empresas, bancos, as Nações Unidas e a sociedade civil trabalhando em parceria para transformar o sistema alimentar.

Reside na criação de ambientes políticos que promovam incentivos e subsídios para que as companhias se afastem do modelo de confinamento de animais. As oportunidades para tornar a produção alimentar mais ecológica são enormes. Considere os subsídios ao setor agropecuário: globalmente, os governos fornecem 700 mil milhões de dólares por ano em incentivos agrícolas, mais de 1 milhão de dólares por minuto, muitos dos quais impulsionam a agricultura industrial, a crise climática e a destruição da vida selvagem. Esse dinheiro poderia ser investido em agricultura regenerativa e alternativas à produção de carne.

Reside nas empresas do meio alimentício que devem estabelecer metas mensuráveis ​​para a redução de alimentos de origem animal, evitando completamente aqueles provenientes da exploração agrícola industrial. Os compromissos sem gaiolas são um pré-requisito para uma alimentação humana e sustentável. Ao setor financeiro, por sua vez, cabe garantir que o financiamento só ficará disponível para apoiar a transição a práticas amigas do bem-estar e positivas para a natureza.

Reside, por fim, no reconhecimento dos gestores políticos de que grandes mudanças são inevitáveis. Não podemos mais nos dar ao luxo de não mudar. Portanto, é necessária uma liderança no mais alto nível, por meio de um acordo global e abrangente da ONU, para transformar os sistemas alimentares, tendo respeito ao clima, à biodiversidade e ao bem-estar humano e animal.

O que mais preocupa o senhor em relação ao Brasil?

Minha maior preocupação com o Brasil é o desmatamento que está acontecendo para alimentar a indústria da pecuária. O que descobri é que o desmatamento no país é impulsionado não pelo pastoreio de gado ao ar livre, mas pelo cultivo e envio de alimentos para as fazendas industriais do mundo. O frango ou porco barato nas prateleiras dos supermercados provavelmente é alimentado com os despojos da Amazônia.

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A imprudência e a destruição ficaram especialmente claras para mim quando descobri a prática do “correntão”. É um barulho ensurdecedor com nuvens de poeira se formando na floresta. Uma corrente de metal resistente originalmente projetada para atracar navios é conectada, em suas extremidades, a duas escavadeiras, que passam a se mover juntas pela mata. Tudo é derrubado. Nada escapa.

Trata-se de um meio controverso de desmatamento, há muito considerado ilegal, mas autorizado no estado brasileiro de Mato Grosso. Árvores podem ser derrubadas em segundos, antes que os restos da floresta sejam devastados pelo fogo e depois pelo gado. Não há nada de novo sobre a expansão da pecuária na floresta amazônica, mas o que é pouco conhecido é como a mão firme da pecuária industrial é o verdadeiro motor por trás dessa destruição.

O senhor acredita que, após a pandemia de Covid-19, a sociedade está mais consciente do conceito de One Health, a saúde única, a englobar o bem-estar do ser humano, da fauna, da flora e do planeta?

No que diz respeito à alimentação, ao bem-estar dos animais e ao meio ambiente, tenho realmente a sensação de que a sociedade tem reconhecido mais esse princípio, o de que a saúde de todos nós depende do respeito aos animais e um ecossistema próspero. Que estamos todos juntos nessa.

A maneira como eu descrevo onde estamos como comunidade global é através das lentes das quatro estações. A nossa sociedade vive atualmente o verão, uma festa sem fim, uma época de consumo sem limites, como se o planeta não tivesse fronteiras.

No entanto, as folhas douradas do outono começam a aparecer à medida que aumenta a ansiedade face às crises climáticas e naturais. Continuemos como estamos e enfrentaremos um inverno perpétuo. A Covid-19 deu-nos um gostinho coletivo disso. Mostrou como a sociedade é frágil e vulnerável.

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Mas como chegamos a uma nova primavera? Bem, a boa notícia é que já existem soluções afirmativas e compassivas que podem nos levar a uma primavera sem fim. Eu resumo essas soluções como os três R’s: Regeneration (regeneração), Rethinking Protein (rever o consumo de proteínas animais) e Rewilding (assilvestramento), principalmente do solo.

Isso significa regenerar o campo através de uma agricultura amiga da natureza, repensar o consumo de carne e leite animal, cujos excessos, por si só, poderiam desencadear alterações climáticas catastróficas, e reconstituir o solo, com fazendas rotativas mistas, que devolvam os animais à terra e permitam a eles experimentar a alegria de viver.

Qual é o papel dos governos e de políticas públicas nessa história?

Vejo a liderança nas políticas públicas como sendo absolutamente crucial para sairmos do modelo destrutivo de produção alimentar e passarmos a um modelo que seja mais propício à criação de um futuro para as próximas gerações. A década de 2020 é descrita como a “década decisiva” em matéria de mudanças climáticas. A evidência disponível mostra que, sem acabar com a pecuária industrial e com as dietas ricas em carne, 2030 será a “década desesperada”, com os líderes lutando tardiamente pelo que deveriam ter feito hoje.

O que os dados nos dizem é que a mudança para uma agricultura regenerativa e a adoção de dietas menos dependentes de produtos de origem animal precisam acontecer agora, com urgência. Só assim evitaríamos uma derrapagem planetária e as décadas mortais que se seguirão a ela. Deixar esse compromisso para além de 2040 será tarde demais.

Em mais de 30 anos atuando pela causa da natureza e do bem-estar animal, quais foram suas principais conquistas?

Olhando para trás, estou realmente satisfeito por ver que o mundo está finalmente acordando para a necessidade de uma mudança radical no sistema alimentar. As últimas discussões no âmbito da ONU sem dúvida atingiram uma transformação radical na narrativa: do olhar para o negócio como sempre, com meros ajustes, para uma reforma do sistema agroalimentar.

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Além disso, fazer com que os animais sejam reconhecidos como seres sencientes, com sentimentos, desejos e necessidades, na legislação da União Europeia e do Reino Unido, tem sido uma grande conquista da qual todos podemos nos orgulhar. Esse movimento provocou um reconhecimento internacional na necessidade de tratar os animais com compaixão. Ao mesmo tempo, obtivemos proibições na Europa contra meios cruéis de criação industrial, como gaiolas estreitas para vitela e galinhas poedeiras e baias de confinamento para porcas grávidas.

Outro avanço foi o envolvimento com a comunidade corporativa em todo o mundo. A Compassion in World Farming trabalha com mais de 1 000 grandes empresas pelo mundo para promulgar compromissos de vender apenas ovos livres de gaiolas, por exemplo. Ao longo dos últimos 12 anos, esses compromissos coletivos somados beneficiaram mais de 2,5 bilhões de animais.

O que os consumidores podem fazer para se engajar nesse movimento de maior cuidado com o planeta?

A chave para enfrentar a ameaça existencial que a sociedade enfrenta devido ao caos climático é acabar com a agricultura industrial. E nisso todos podemos desempenhar um papel. Os governos e as empresas precisam definir políticas que incentivem a agricultura regenerativa e amiga da natureza, combinada com dietas menos dependentes de alimentos de origem animal. A ONU deveria liderar um acordo global para transformar os sistemas alimentares.

Como consumidores, todos podemos agir no nosso prato três vezes ao dia, optando por comer mais plantas e menos carne, leite e ovos. E, quando consumi-los, priorizar os alimentos que vêm de fazendas com animais criados livres.

Assim, todos podemos ajudar a garantir que os animais de criação experimentem a alegria de viver. Podemos criar paisagens cheias de vida. Podemos transformar a perspectiva de apenas 60 colheitas restantes para um futuro maravilhoso e amigo da natureza para os nossos filhos. Temos o poder de moldar um novo mundo mais compassivo para todos.

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