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Vidas em versos: as despedidas que marcaram 2023

O Brasil e o mundo deram adeus a quem nos fez ver o cotidiano de um outro modo — por vezes mais duro, mas sempre mais inteligente

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 dez 2023, 09h38 - Publicado em 22 dez 2023, 06h00
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  • RITA LEE
    Roqueira

    “Filha, você é a ovelha negra da família”

    E, então, aquela moça sardenta e de cabelos ruivos apareceu na TV, com Os Mutantes, para defender Domingo no Parque, de Gilberto Gil, no III Festival de MPB, em 1967. Dali para a frente, Rita Lee marcaria a história do Brasil, de amores e dores, na defesa da democracia e dos direitos das mulheres. Uma geração inteira pode medir sua existência pelo bom humor e pela inteligência da roqueira, em letras a um só tempo engraçadas e profundas — em melodias adesivas, riffs de guitarra inigualáveis e iconoclastia, a vida como ela é. No início dos anos 1970, epitáfio da geração hippie, tinha dúvidas em Mamãe Natureza: “Mas eu não sei se estou pirando / Ou se as coisas estão melhorando”. Depois, em pleno movimento de abertura política, com os primeiros sinais de novos comportamentos, começou a mostrar que a voz feminina precisava soar poderosa, em tom equivalente ao dos homens, sem concessões, e avisava, em Mania de Você: “Meu bem, você me dá água na boca / Vestindo fantasias, tirando a roupa”. Sem Rita, onde estaria a graça de um país sofrido? Até o fim, diagnosticada com câncer, ela manteve a coerência — sem medo de se expor, sem receio da verdade. Morreu em 8 de maio, aos 75 anos.

    * * *

    Ao longo das próximas páginas, trechos de sucessos de Rita Lee marcam, como cabeçalho, os obituários de quem morreu em 2023.

    LENY ANDRADE e DORIS MONTEIRO
    Cantoras

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    LENY ANDRADE e DORIS MONTEIRO (Mônica Imbuzeiro/Ag. O Globo; Arquivo/Ag. O Globo/.)
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    “Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira?”

    Houve um tempo em que o Brasil e o mundo ainda não tinham acompanhado a batida de violão sincopada e a voz miúda de João Gilberto. Antes dele, em 1957, Doris Monteiro estourou nas rádios com um samba-canção, Mocinho Bonito, composição de Billy Blanco, a mais tocada daquele ano. Era a abertura de uma porta — no ritmo e no timbre — para a avenida pela qual passariam João Gilberto, Tom e Vinicius. Era o prólogo da bossa nova. Um pouco antes, em 1951, com apenas 17 anos, ela gravaria um disco de 78 rotações com Se Você Não Se Importasse, de Peterpan, de um lado, e Fecho Meus Olhos… Vejo Você, de José Maria de Abreu, do outro — indício do nascimento de algo muito novo.

    Quando começou a carreira de crooner, em 1958, aos 15 anos, Leny Andrade tinha uma inspiração: Doris Monteiro. Não demorou para ser convidada a participar das noitadas de música do Beco das Garrafas, o berço da bossa nova, em Copacabana, no Rio. Com o LP A Sensação, de 1961 — e ao longo de 34 álbuns —, ela trilhou carreira sem fronteiras, de alcance internacional, mestra no improviso vocal — o scat-singing, no dicionário do jazz. Em 2008, depois de um show em Nova York, um dos críticos do The New York Times, espantado com a mistura, embebida de samba, jazz e boleros, a definiu como “um misto de Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald da bossa nova”. Leny e Doris morreram, ambas, em 24 de julho. Leny tinha 80 anos. Doris, 88.

    ASTRUD GILBERTO
    Cantora

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    ASTRUD GILBERTO (ullstein bild/Getty Images)
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    Com Garota de Ipanema em inglês, em 1964, Astrud Gilberto fez a bossa nova deixar as fronteiras do Rio. Aquele registro recebeu o Grammy de melhor gravação em 1965. O álbum Getz/Gilberto, parceria do saxofonista americano Stan Getz e João Gilberto, no qual aparecia a voz suave da cantora brasileira, foi o número 1 entre os mais votados — Astrud concorria também ao troféu de artista revelação, mas perdeu para os Beatles. De 1959 a 1964 ela foi casada com João. Morreu em 5 de junho, aos 83 anos.

    TINA TURNER
    Cantora

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    TINA TURNER (Denize Alain/Sygma/Getty Images)

    “Baila comigo como se baila na tribo”

    A vasta cabeleira era apenas a moldura de uma cantora de magnetismo sexual, energia transbordante e voz áspera. Não havia nada igual. Quem não dançou ao som de Tina Turner, em clássicos instantâneos como Proud Mary (1971), What’s Love Got to Do with It (1984) e We Don’t Need Another Hero (1985)? Quem não se empolgou ao vê-la rebolar ao lado de Mick Jagger? Tina iniciou a carreira de meio século no final dos anos 1950. Ainda cursava o ensino médio quando começou a cantar com Ike Turner — com quem se casaria — e sua banda, Kings of Rhythm. Não demorou para chamar atenção, a se destacar acima da planície, em sucesso instantâneo, em misto de blues e rock. Em 1976, depois de ter apanhado de Ike sucessivas vezes, fugiu de casa. Pediu divórcio, com apenas 36 centavos de dólar no bolso, e fez uma única exigência: manter o nome artístico. E que não a amolassem. Emancipada das garras do marido irresponsável, a artista protagonizou nos anos seguintes uma das mais espetaculares carreiras da música popular, ícone de força feminina. Ela morreu em 24 de maio, aos 83 anos.

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    SINÉAD O’CONNOR
    Cantora

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    SINÉAD O’CONNOR (Michel Linssen/Redferns/Getty Images)

    Mulher de opiniões contundentes e fortes, Sinéad O’Connor militou em assuntos como abuso sexual e direitos das mulheres. Em 1992, em uma de suas atitudes mais controversas, a irlandesa rasgou uma foto do papa João Paulo II durante o programa americano Saturday Night Live, em protesto contra padres católicos acusados de abuso infantil. O caso revoltou religiosos, que passaram a boicotar a artista. A irlandesa obteve fama mundial ao lançar seu primeiro disco, The Lion and the Cobra, em 1987. O grande sucesso viria três anos mais tarde, no álbum I Do Not Want What I Haven’t Got. A canção Nothing Compares 2 U, composta pelo americano Prince, liderou o Billboard Hot 100 durante quatro semanas, entre abril e maio de 1990, até ser destronada por Vogue, de Madonna. Ela morreu em 26 de julho, aos 56 anos.

    HARRY BELAFONTE
    Cantor

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    HARRY BELAFONTE (./AFP)
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    Apoiador incansável dos direitos civis nos EUA dos anos 1960, Harry Belafonte ficou conhecido como o rei do calypso depois do sucesso Day-O (The Banana Boat Song), lançado em 1956. Ele já tinha conquistado alguma notoriedade no cinema, em filmes como o musical Carmen Jones, de 1954. Contudo, seu legado será sempre o do ativismo político. Foi um dos principais convidados, aplaudido em pé, de modo comovente, na posse de Barack Obama na Presidência dos Estados Unidos, em 2009. Morreu em 25 de abril, aos 96 anos.

    TONY BENNETT
    Cantor

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    TONY BENNETT (Kevin Mazur/WireImage/Getty Images)

    Ele nasceu para ser Frank Sinatra — e chegou muito perto dessa condição. Em seus setenta anos de carreira, Tony Bennett se notabilizou pela consistência profissional, gravando os grandes clássicos do cancioneiro popular americano, em composições de Cole Porter, Gershwin, Duke Ellington e muitos outros. Coerente, de vozeirão lindo e dicção perfeita — quase como Sinatra, ressalte-se —, resistiu ao sucesso do rock’n’roll, insistindo em continuar gravando apenas grandes canções americanas. O auge de seu estrelato ocorreu em 1962, quando lançou sua canção mais conhecida, I Left My Heart in San Francisco. Apesar do Alzheimer no final da vida, teve uma carreira de incontestável sucesso mundial. Nos últimos anos, embalou uma bem-sucedida parceria com a cantora Lady Gaga. Juntos, gravaram dois álbuns de duetos, em 2014 e 2021. Morreu em 21 de julho, aos 96 anos.

    JOÃO DONATO
    Compositor

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    JOÃO DONATO (Felipe Varanda/Folhapress/.)

    “Eu quis cantar minha canção iluminada de sol”

    Foi o próprio João Donato, nascido no Acre e radicado no Rio de Janeiro, quem definiu a si mesmo, numa entrevista: “Não sou bossa nova, não sou samba, não sou jazz, sou tudo ao mesmo tempo”. Ao misturar estilos musicais, preferencialmente ao teclado de um piano ou de um acordeom, compôs melodias delicadas que, em alguns casos, demorariam décadas para ganhar letra. Alguns de seus clássicos: A Rã, Até Quem Sabe, Bananeira, Lugar Comum e A Paz, em parceria com Gilberto Gil. Eram canções iluminadas de sol. Ele morreu em 17 de julho, aos 88 anos.

    CARLOS LYRA
    Compositor e Cantor

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    CARLOS LYRA (./Divulgação)

    Para Tom Jobim, ele era o “maior melodista” da bossa nova. Caetano Veloso o homenageou na letra de A Bossa Nova É Foda, no verso “O magno instrumento grego antigo diz que quando chegares aqui…”. Magno, na explicação do baiano, é Carlos. O instrumento grego antigo é a lira. Quando Chegares é o título da primeira composição de Carlos Lyra. Sem ele, João Gilberto não teria Maria Ninguém e Lobo Bobo para cantar. Lírico e amoroso — “Se você quer ser minha namorada / ah, que linda namorada / você poderia ser” —, teve intensa atividade militante no início dos anos 1960 contra a ditadura militar. Foi um dos criadores do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), de apoio às populações de bairros pobres. Morreu em 16 de dezembro, aos 90 anos.

    JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
    Diretor de Teatro

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    JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA (Marcos Alves/Ag. O Globo/.)

    “Acenderam as luzes, cruzes!”

    Sem o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, o Brasil seria insosso e assexuado. Não saberia resistir ou revelar inconformismo. Seria, enfim, careta, fadado a olhar para o passado como se ele devesse se perpetuar. Com a clássica O Rei da Vela, montada em 1967, ele reinventou a peça homônima do modernista Oswald de Andrade com uma carga mordaz de crítica social e política. Em 1968, às vésperas da decretação do AI-5, ato que daria início à fase mais repressiva da ditadura militar, estreou seu trabalho de maior contundência contra o autoritarismo: Roda Viva, escrita por Chico Buarque, condena a sociedade do consumo e a violência das instituições, com deboche e provocação. Por onde passou, o espetáculo atraiu ataques e até agressões aos atores. Em 1974, o diretor foi preso e torturado no extinto Dops. Exilado, viveu em Portugal por quatro anos. Ao retornar, seguiu sua toada, a inteligência no avesso da banalidade. Disse Zé Celso: “É engraçado que minha geração foi chamada de contracultura. Mas quem é ‘contra a cultura’ são eles. Eles têm medo da liberdade, da arte e da criação”. Morreu em 6 de julho, aos 86 anos.

    ARACY BALABANIAN
    Atriz

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    ARACY BALABANIAN (Irineu Barreto/Ag. O Globo/.)

    Antes do charabiá das redes sociais, os críticos de teatro eram tratados com respeito e atenção, como faróis do que estaria por vir. “Aracy Balabanian, guardem esse nome”, anotaram Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado em uma resenha. Eles tinham visto a atriz mal saída da adolescência, de 14 anos, no palco com a peça A Almanjarra, de Artur Azevedo. O sucesso no proscênio, nos anos 1960, a levaram a ser convidada a trabalhar na televisão — e, então, deu-se o nascimento de uma profissional eclética, que ajuda a contar a vitoriosa história da tela pequena. Para crianças ou adultos, no drama ou na comédia, especialmente em novelas, Aracy atraiu o carinho do Brasil. Em Vila Sésamo, de 1973, ela foi a Gabriela, par de Juca, interpretado por Armando Bógus. Em 1990, conquistou o país com a Dona Armênia, de Rainha da Sucata, a mãe controladora de três filhos. Um de seus bordões, ao dizer que colocaria o prédio da Sucata “na chón”, virou mania — em sotaque inspirado na própria família de origem armênia. Em A Próxima Vítima, de 1995, ela fez a manipuladora Filomena. Contudo, como a verve cômica parecia movê-la, aceitou o papel de Cassandra, uma dama da sociedade em decadência, em Sai de Baixo, que estrearia em 1996. Morreu em 7 de agosto, aos 83 anos.

    LÉA GARCIA
    Atriz

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    LÉA GARCIA (Leo Martins/Ag. O Globo/.)

    Em Orfeu Negro, filme de 1959 dirigido pelo diretor francês Marcel Camus, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, um motorista de ônibus que dá titulo ao longa baseado numa peça de Vinicius de Moraes cai de amores por Eurídice — desce do Olimpo da favela para o inferno do asfalto em busca da amada. A atriz Léa Garcia, no papel de uma prima da protagonista, encantou o mundo — e por pouco não ganhou a premiação máxima na França. Durante muito tempo, sempre que se pensava em uma atriz brasileira, a bonita figura de Léa, sorridente e reflexiva em doses equivalentes, é que ocupava corações e mentes. Depois, ao longo de seis décadas, faria sucesso no teatro e na televisão, ao empurrar as portas do preconceito racial, pioneira, corajosa e articulada. Ela morreu em 15 de agosto, aos 90 anos.

    MATTHEW PERRY
    Ator

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    MATTHEW PERRY (Colleen Hayes/NBC/Getty Images)

    “Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck, não vou bancar o santinho”

    Não foi preciso mais do que um minuto, no episódio inaugural do sitcom Friends, em setembro de 1994, para entender qual era o tom do personagem Chandler Bing, interpretado pelo ator Matthew Perry. Irônico, com cara de sonso, sua primeiríssima frase cutucava Monica (Courteney Cox), que acabara de marcar o primeiro encontro com um pretendente. “Ele é corcunda e usa peruca?”, indagou, sentado no braço esquerdo do sofá do café Central Perk, em Manhattan, ali onde a turma se reunia para falar da vida, rir e chorar. Friends — que foi ao ar ao longo de dez anos, em 236 episódios — foi o mais bem-acabado retrato de uma geração, a de jovens adultos que tinham medo de amadurecer, se é que sabiam como fazê-lo, e talvez não soubessem mesmo. Perry, na pele de Chandler, era a voz que pontuava os diálogos, em comentários sardônicos que invariavelmente vinham acompanhados da clássica claque ao fundo — embora, no caso dele, a graça fosse automática, em timing perfeito para a comédia. Ele morreu em 28 de outubro, aos 54 anos.

    TREAT WILLIAMS
    Ator

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    TREAT WILLIAMS (ChristopheL/AFP)

    O cabelão, o charme descomunal, o jeito alegre e irônico… Quem não se apaixonou pelo hippie George Berger do musical Hair, dirigido pelo checo Milos Forman, de 1979? Interpretado por Treat Williams, virou um dos personagens mais queridos da geração dos anos 1970 e 1980, que redescobria os dissabores da turma do “Faça amor, não faça guerra” do tempo do Vietnã, na Era de Aquário. A cena da dança em cima da mesa de jantar fina e elegante ao som de I Got Life é um clássico incontornável: “Não tenho casa, não tenho sapatos / não tenho dinheiro, não tenho classe / não tenho saias, não tenho casacos”. Ele morreu em 12 de junho, aos 71 anos.

    GINA LOLLOBRIGIDA
    Atriz

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    GINA LOLLOBRIGIDA (Arcola Pictures/Christophel/AFP)

    “Mas, de repente, o filme pifou e a turma toda logo vaiou”

    Em um tempo sem redes sociais, sem a efemeridade vazia alimentada pelos chamados influencers, a fama tinha de ser construída tijolinho por tijolinho, ou filme a filme, como fez a atriz italiana Gina Lollobrigida. A sensualidade que transbordava das telas logo a fez celebrada — era a maggiorata, termo um tantinho pejorativo usado para designar as voluptuosas atrizes italianas dos anos 1950 e 1960, depois da tristeza dos tempos de guerra. De Frank Sinatra a Sean Connery, de Marcello Mastroianni a Humphrey Bogart, todos os grandes atores estiveram ao lado de Lollo. Com Bogart, aliás, ela conquistou Hollywood, ao estrelar O Diabo Riu por Último, de 1953, dirigido por John Huston. Na carreira cinematográfica, admitia um arrependimento: ter recusado um papel coadjuvante em A Doce Vida, de Federico Fellini, que deixou escapar porque recebia roteiros sem cessar e se atrapalhou com a papelada acumulada. Em 2013, leiloou parte da sua coleção de joias e doou mais de 5 milhões de dólares arrecadados para as pesquisas com células-tronco. Tentou, sem sucesso, uma vaga no Parlamento Europeu e no Senado da Itália. Morreu em 16 de janeiro, aos 95 anos.

    LISA MARIE PRESLEY
    Atriz

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    LISA MARIE PRESLEY (Frazer Harrison/Getty Images)

    Não poderia ser fácil o cotidiano da única filha de Elvis Presley. Lisa Marie tinha 9 anos quando o pai morreu, em 1977, de overdose de medicamentos. Tentou carreira musical, mas não vingou. Virou empresária de artistas, mas também nessa seara a realidade lhe foi ingrata. Na vida pessoal, colheu decepções: foi casada quatro vezes: com o músico Danny Keough (de 1988 a 1994); com Michael Jackson (1994 a 1996); com o ator hollywoodiano Nicolas Cage (2002) e com Michael Lockwood. Teve quatro filhos. Um deles, Benjamin Keough, se matou em 2020, aos 27 anos. Morreu em 13 de julho, aos 54 anos.

    JANE BIRKIN
    Atriz e Cantora

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    JANE BIRKIN (Photo12/AFP)

    Ela virou estrela com sutileza e estardalhaço, ao costurar posturas improváveis de caminharem de mãos dadas — sem roupa, diante das lentes do fotógrafo de moda do clássico Blow Up — Depois Daquele Beijo, de 1966, dirigido pelo italiano Michelangelo Antonioni, a atriz inglesa Jane Birkin logo atraiu olhares e atenções. Era como a bossa nova misturada com o rock. Numa viagem a Paris, conheceu o cantor e compositor Serge Gainsbourg. Juntos, em aliança profissional e sentimental, formaram um par como John e Yoko, ainda mais da pá virada. As canções de Gainsbourg interpretadas por Jane em francês com sotaque britânico viraram o símbolo de um tempo de provocações, o final dos anos 1960 e os 1970. Não por acaso, Je T’Aime Moi Non Plus, de 1969, foi condenada pelo Vaticano e censurada pela ditadura militar no Brasil, com os gemidos e sussurros a emoldurar a linda melodia e a letra quase ingênua (“Ó, meu amor, você e a onda, eu e a ilha nua”). Morreu em 16 de julho, aos 76 anos.

    MARY QUANT
    Estilista

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    MARY QUANT (Hulton Archive/Getty Images)

    “E nem só de cama vive a mulher”

    Convém agradecer à estilista britânica Mary Quant o fato de as mulheres poderem sair por aí vestindo uma minissaia, e que ninguém faça troça. A ela é atribuída a invenção da peça de moda, na fervilhante Londres dos anos 1960, a Swinging London, contaminada pelos Beatles e pelos Rolling Stones, quando todos eram jovens, muito jovens, e moderninhos, embora um tanto perdidos. Há, contudo, uma celeuma infindável: alguns historiadores dão o crédito do pouco pano nas saias ao francês André Courrèges. Pouco importa, porque Mary é quem se transformou em rosto e corpo daquele período de profundas mudanças de comportamento. Ela morreu em 13 de abril, aos 93 anos.

    IAN WILMUT
    Embriologista

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    IAN WILMUT (PA Images/Alamy/FOTOARENA/.)

    “Estou no colo da mãe natureza, ela toma conta da minha cabeça”

    Em março de 1997, ao anunciar na capa o nascimento da ovelha Dolly, uma reportagem de VEJA tratou o tema com a grandeza que merecia, dado o espanto: “Para Dolly nascer, foi preciso que um anjo torto, desses que andam de jaleco branco, a arrancasse inteira de dentro de outro animal. Como Eva no Velho Testamento, feita com uma das costelas de Adão, Dolly veio ao mundo como um pedaço de outro ser adulto. Dolly, a ovelha escocesa de cuja concepção extraordinária o mundo tomou conhecimento na semana passada, não tem pai nem mãe. Ela tem apenas origem, uma origem que não é divina. É humana. Dolly é o cordeiro dos homens. Mais exatamente, é o cordeiro de Ian Wilmut, embriologista do Instituto Roslin, instituição de pesquisa agropecuária nos arredores de Edimburgo, capital da Escócia”. E, então, Wilmut virou um dos grandes nomes da ciência de nosso tempo — porta-voz de uma discussão ética que nunca cessou, e vai longe. Ele morreu em 10 de setembro, aos 79 anos.

    GORDON MOORE
    Engenheiro

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    GORDON MOORE (Justin Sullivan/Getty Images)

    O engenheiro americano Gordon Moore, um dos criadores da Intel — a empresa do Vale do Silício que fornece cerca de 80% dos computadores pessoais do mundo com seu componente vital, o microprocessador —, era a um só tempo homem de pôr a mão na massa e de pensar sua atividade. Em 1965, ele publicou um artigo numa revista científica com uma frase que logo seria apelidada de Lei de Moore. Eis o que disse Moore: o número de transistores em um chip de computador — que determina a velocidade, a memória e a capacidade de um dispositivo eletrônico — dobraria a cada ano, pelo mesmo custo. E assim foi, atalho para máquinas cada vez mais poderosas e mais baratas. “Todos nós que viemos depois de Gordon temos uma dívida de gratidão com ele”, disse Tim Cook, o atual presidente da Apple. Morreu em 24 de março, aos 94 anos.

    LOUISE GLÜCK
    Escritora

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    LOUISE GLÜCK (Daniel Ebersole/Nobel Prize/.)

    “Qual é a moral, qual vai ser o final dessa história?”

    “Vemos o mundo uma única vez, na infância. O resto é memória.” Com base em trechos de poemas como este, a Academia Sueca concedeu em 2020 o Prêmio Nobel de Literatura para a escritora americana Louise Glück (lê-se Glick). A justificativa, na concessão da láurea, foi cristalina, ao identificar uma “inconfundível voz poética que, com austera beleza, faz da existência individual universal”. Nascida em Nova York, em 1943, durante a II Guerra, filha de uma família de imigrantes húngaros de origem judaica, ela começou a carreira em 1968, com o lançamento da primeira de doze coletâneas de poesias, Firstborn. Ganhou notoriedade e respeito nos meios acadêmicos, vivia quase no anonimato até ser internacionalmente reconhecida com a mais respeitada das premiações — embora fosse cultuada como um dos grandes nomes dos versos em inglês. Seus poemas foram lançados no Brasil, em português, somente depois do Nobel. Morreu em 13 de outubro, aos 80 anos.

    MARTIN AMIS
    Escritor

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    MARTIN AMIS (Ulf Andersen/Aurimages/AFP)

    Mestre do humor cáustico e com permanente olhar para o mundo ocidental em transformação na segunda metade do século XX, o britânico Martin Amis definiu com um sorriso de canto de boca o seu trabalho de mais de cinquenta anos: “O que tentei fazer foi criar um estilo erudito para descrever a baixa cultura, todo aquele mundo do fast-food, espetáculos de sexo e revistas pornográficas”, afirmou. “Frequentemente sou acusado de me concentrar no lado pungente da vida em meus livros, mas qualquer um que leia tabloides vai deparar com horrores muito maiores do que aqueles que escrevo.” Nos anos 1980 e 1990, ele ganhou notoriedade com a chamada “trilogia de Londres”: Grana (1984), Campos de Londres (1989) e A Informação (1995). Ao lado de um trio de amigos inseparáveis — Salman Rushdie, Ian McEwan e Christopher Hitchens —, inaugurou um movimento de renovação da literatura britânica que misturava estilo, em prosas impagáveis e fluentes, com política. Eterno candidato ao Nobel de Literatura, que a rigor desdenhava, nunca chegou lá. Declarou Salman Rushdie: “Ele costumava dizer que o que queria era deixar para trás uma estante de livros — para poder afirmar: ‘Daqui para cá sou eu’. Seus amigos vão sentir muita falta dele. Mas nós temos a prateleira”. Morreu em 19 de maio, aos 73 anos.

    KENZABURO OE
    Escritor

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    KENZABURO OE (Fred Toulet/Leemage/AFP)

    Há um modo de entender a história do Japão depois da II Guerra: lendo a obra do escritor Kenzaburo Oe, prêmio Nobel de Literatura de 1994. A um só tempo intimista e universal, em textos prenhes de esperança e desilusão, ele traçou o caminho de um país — e, a partir dele, do mundo — que brigava simultaneamente para esquecer o passado e pavimentar o futuro. “A única, a verdadeira questão que interessa a um intelectual é o sofrimento humano”, disse. Seu romance mais conhecido no Brasil, de evidente cunho autobiográfico, é Uma Questão Pessoal. Em 1963, Oe teve um filho com uma anomalia cerebral. Bird, o personagem central da trama, um professor de cursinho que afoga as dores na bebida, atravessa situação similar — e de seu drama brota uma bela narrativa entre o devaneio e o desespero. Morreu em 3 de março, aos 88 anos.

    HENRY KISSINGER
    Diplomata

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    HENRY KISSINGER (Roberto Schmidt/AFP)

    “Alô, alô, marciano, a crise tá virando zona”

    “O ilegal fazemos imediatamente. O inconstitucional demora um pouco mais.” A irônica frase do diplomata americano nascido na Alemanha, Henry Kissinger, foi o mantra de uma vida decisiva. Ele moldou a segunda metade do século XX, sobretudo os anos 1970, como eminência parda das relações internacionais dos governos de Richard Nixon e Gerald Ford, nos Estados Unidos. Pragmático — seu mantra era a real politik alheia a emoções ideológicas —, costurou o delicado equilíbrio entre Estados Unidos e União Soviética. Convenceu a China comunista a se abrir para a economia de mercado. Foi um dos pilares das sístoles e diástoles no Vietnã, que resultariam em derrocada moral americana. Alimentou as ditaduras militares na América do Sul, inclusive a do Brasil. Foi celebrado e criticado a um só tempo. Morreu em 29 de novembro, aos 100 anos.

    SILVIO BERLUSCONI
    Político

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    SILVIO BERLUSCONI (Vincenzo Lombardo/Getty Images)

    Na arqueologia política que culminaria em populistas de direita como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, um nome será sempre visto como pioneiro — o de Silvio Berlusconi, primeiro-ministro da Itália durante três mandatos, entre 1994 e 2011. Orador carismático, treinado em shows de música a bordo de cruzeiros, seu mundo era uma caricatura da realidade. No início, não foi levado a sério. Aos poucos, contudo, por meio de uma vasta rede de empresas de comunicação — que incluía emissoras de televisão a cabo, jornais e a editora de livros Mondadori, além do controle de um dos mais populares clubes de futebol, o Milan, que adquiriu em 1986 —, ele conquistou popularidade e votos. Com a derrocada de partidos tradicionais mergulhados na corrupção, cujos intestinos foram iluminados pela Operação Mãos Limpas, Berlusconi fundou no início dos anos 1990 o Forza Itália — agremiação que existe ainda hoje, sem o vigor de antes, ressalte-se, embora faça parte da coligação de poder da primeira-ministra Giorgia Meloni. Envolvido em acusações de suposto suborno de testemunhas em episódios de prostituição de menores, atrelados às suas infames festas sexuais, chamadas de bunga-­bunga, apenas em fevereiro deste ano ele foi absolvido. Morreu em 12 de junho, aos 86 anos.

    JUCA CHAVES
    Compositor e Humorista

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    JUCA CHAVES (Fábio Guimarães/Ag. O Globo/.)

    “Mais louco é quem me diz, e não é feliz”

    A ironia era a característica mais marcante — e a mais interessante — do humorista, compositor e cantor carioca Juca Chaves. Capaz de mesclar crítica política com romantismo, ele não perdoava nada nem ninguém em busca do riso. Em 1960, no início da carreira, foi logo dizendo a que veio, ao cutucar o presidente Juscelino com um pequeno clássico, Presidente Bossa Nova: “Bossa nova mesmo é ser presidente / desta terra descoberta por Cabral / para tanto basta ser tão simplesmente / simpático, risonho, original / depois desfrutar da maravilha / de ser o presidente do Brasil”. Com o golpe militar de 1964, não lhe restou outro caminho a não ser o exílio, entre Portugal e Itália. Voltou afiado. Apelidado de “menestrel maldito” por Vinicius de Moraes, seguiu com letras ferinas e comentários sarcásticos. “Sabe como se mede um burro? Médici, dos pés à cabeça”, escreveu, o dedo em riste para o general de plantão, em 1970. “Upa, upa, upa, cavalinho sem medo / leva pra Brasília o presidente Figueiredo”, comporia para o derradeiro mandachuva de quepe. Quando Chico Anysio se casou com Zélia Cardoso de Mello, que fora ministra de Collor no tempo do confisco da poupança, em 1992, ele não perdoou: “O Chico é o pai de todos os humoristas, que todos nós tanto admiramos. O problema é que ele acabou se casando com a própria piada”. Morreu em 25 de março, aos 84 anos.

    JOSÉ MURILO DE CARVALHO
    Historiador

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    JOSÉ MURILO DE CARVALHO (Leo Pinheiro/Valor/Ag. O Globo/.)

    “Quem te conhece não esquece, meu Brasil é com S”

    Tom Jobim, que sabia das coisas, cunhou uma frase que não para de ecoar: “O Brasil não é para amadores”. Para traduzir as mazelas de um país intraduzível, só mesmo por meio da inteligência de historiadores capazes de enxergar as camadas debaixo do superficial. Um deles foi José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras. Com uma vasta coleção de textos acadêmicos e livros de prosa delicada — “o hábito de contribuir com artigos para a imprensa tornou minha escrita mais enxuta e elegante” —, Murilo de Carvalho foi pioneiro ao detalhar a participação das elites nos governos do Império e, depois, junto ao Exército. Entre seus trabalhos mais reputados estão A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil, Cidadania no Brasil: o Longo Caminho e Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que Não Foi. Ele morreu em 13 de agosto, aos 83 anos.

    BORIS FAUSTO
    Historiador

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    BORIS FAUSTO (Jonne Roriz/.)

    Referência entre seus pares, Boris Fausto, professor do Departamento de Ciência Política da USP, estabeleceu um marco ao escrever, em 1969, A Revolução de 1930 — Historiografia e História. Ele propunha uma interpretação inovadora para as razões que levaram ao fim da Primeira República e o que viria a se tornar, em seguida, o Estado Novo de Getúlio Vargas. Com o tempo, Fausto trocou o olhar amplo da organização social e política brasileira por narrativas mais pontuais, concentradas em casos de crime. São dessa nova fase O Crime do Restaurante Chinês — Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30, de 2009, e O Crime da Galeria de Cristal, de 2019. O luto era também um de seus temas de predileção, lindamente registrados nos delicados O Brilho do Bronze: um Diário, que escreveu ao longo de quatro anos para enfrentar a experiência da morte da mulher, Cynira, com quem foi casado por 49 anos, e Vida, Morte e Outros Detalhes, elegia ao irmão Ruy. Ele morreu em 18 de abril, aos 92 anos.

    JOSÉ GREGORI
    Advogado

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    JOSÉ GREGORI (Filipe Redondo/Folhapress/.)

    Ministro da Justiça entre 2000 e 2001, na Presidência de Fernando Henrique Cardoso, o advogado José Gregori foi sempre uma das vozes mais influentes na defesa da democracia, especialmente na transição depois de 21 anos de ditadura militar. Corajoso, defendeu presos políticos e integrou a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, que nos anos 1970 apoiou familiares de torturados. Foi também um dos fundadores da Comissão Arns, criada em 2019 para acompanhar e denunciar violações de direitos humanos. Seguia, firme e convicto, uma trajetória pessoal e profissional de bela coerência. Em 1977, das arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde se formou, ele fez o discurso que antecipou o do jurista Goffredo da Silva Telles no anúncio da Carta aos Brasileiros, documento que ajudaria a acelerar a democratização do país. No ano passado, em ambiente de ameaças golpistas de Jair Bolsonaro, ele pôs seu nome em outro documento seminal, a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito. Morreu em 3 de setembro, aos 92 anos.

    DOMENICO DE MASI
    Sociólogo

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    DOMENICO DE MASI (Leonardo Cendamo/Getty Images)

    “Me cansei de lero-lero”

    Muito antes de a pandemia bagunçar o cotidiano do trabalho, com a introdução do sistema híbrido, muito antes de a internet e as redes sociais mudarem o ritmo das sociedades, o sociólogo italiano Domenico De Masi intuiu que o tempo livre também poderia ser produtivo. É dele a criação da expressão “ócio criativo”, título de um livro lançado no ano 2000. Sempre bem-humorado, De Masi tinha a inteligência de apontar as mazelas das sociedades, aceleradas pelas desigualdades sociais, mas buscar saídas. Disse a VEJA, no ano passado, em entrevista dada em torno do lançamento de um de seus estudos, O Trabalho no Século XXI: Fadiga, Ócio e Criatividade na Sociedade Pós-­Industrial: “Em nenhuma época histórica, houve um mundo tão bom quanto este em que vivemos. Vivemos até 80 anos, quando antes a expectativa de vida era de 40 anos. Hoje, temos os analgésicos, que nos poupam da dor, uma das tragédias da humanidade. Acredito que os seres humanos serão capazes de não destruir tudo o que foi criado”. Ele morreu em 9 de setembro, aos 85 anos.

    DOM MAURO MORELLI
    Bispo

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    DOM MAURO MORELLI (Nelson Perez/VALOR/AG. O GLOBO/.)

    “Me lembro às vezes de você, meu bom José, meu pobre amigo”

    “Quem tem fome tem pressa.” De mãos dadas com o bispo paulista dom Mauro Morelli, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997), criou a frase que serviria de slogan da seminal Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criada nos anos 1990. O movimento, bonito e fundamental, ajudou, se não a resolver, ao menos a iluminar um problema trágico do Brasil, o da insegurança alimentar, que ainda hoje é uma sombra incômoda. Morelli desde a juventude, logo depois de se formar em filosofia e teologia, se dedicou ao tema, tão próximo dos fiéis que o buscavam na diocese de São Paulo, no início dos anos 1970, como bispo auxiliar de dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016). A partir de suas experiências, ajudou a criar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional durante o governo Itamar Franco (1993-1994) e o Fome Zero do primeiro mandato de Lula. Em maio de 1981, foi nomeado como o primeiro bispo da então criada Diocese de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ele morreu em 9 de outubro, aos 88 anos.

    ROBERTO DINAMITE
    Jogador de Futebol

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    ROBERTO DINAMITE (Rodolpho Machado/.)

    “Quero mais saúde!”

    Poucos nomes são tão identificados com um único clube de futebol quanto Roberto Dinamite, o maior ídolo da história do Vasco da Gama. Ele marcou 708 gols em 1 110 partidas com a camisa cruz-maltina. É o maior artilheiro da história do Campeonato Brasileiro, com 190 tentos. Em períodos muito curtos, por empréstimo, já em fim de carreira, jogou pela Portuguesa de São Paulo e pelo Campo Grande carioca — mas logo retornava ao time de origem. Entre 1979 e 1980, esteve no Barcelona. Fez apenas onze jogos, discreto. Ao retornar da Espanha, celebrado como herói, fez do Maracanã palco para uma das mais espetaculares exibições de gala de um atacante: na vitória vascaína contra o Corinthians, por 5 a 2, ele marcou todos os gols. Pela seleção, disputou as Copas de 1978 e 1982. Depois de pendurar as chuteiras, seguiu carreira política, com sucessivos mandatos como deputado estadual. Em 2008, foi eleito presidente do Vasco. Figura incontornável do Gigante da Colina, foi homenageado com um busto. Nem seria preciso, dado estar colado à imensa paixão da torcida, que o canta de coração. No velório do atacante, no centro do gramado de São Januário, o rubro-negro Zico — o único craque carioca a rivalizar na adoração por uma torcida — foi recebido com aplausos, em gesto de reconhecimento da amizade, no avesso da rivalidade. Dinamite morreu em 8 de janeiro, aos 68 anos.

    BOBBY CHARLTON
    Jogador de Futebol

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    BOBBY CHARLTON (Hulton Archive/Getty Images)

    O atacante inglês Bobby Charlton (com a taça, na foto) parecia vestir no gramado, de chuteiras, o terno de lã azul que costumava usar quando não praticava esporte. Altivo, elegante, dono de uma visão de jogo inigualável e com faro de gol comparado ao do húngaro Puskás, seu contemporâneo, era considerado um dos grandes, se não o maior, jogador da história do Manchester United e da seleção da Inglaterra. Em 1966, em Wembley, palco da final da Copa do Mundo vencida pelos inventores do futebol, o capitão do time era Bobby Moore — mas a rainha da Inglaterra, Elizabeth, fez questão de oferecer a taça Jules Rimet também a Charlton. Em 1994, ela o condecoraria como Sir. Era a celebração de um atleta que atravessou as décadas, campeão em tudo, autor de 249 gols, como se cumprisse uma missão: homenagear os companheiros do Manchester que tinham morrido em um acidente de avião em 1958. O elenco retornava de uma partida de quartas de final da Copa dos Campeões da Europa contra o Estrela Vermelha (empate por 3 a 3, com dois gols de Charlton), disputada em Belgrado. A escala em Munique, com a pista coberta de gelo, foi o palco da tragédia. Havia 44 pessoas a bordo do voo 609 da British European Airways — vinte morreram na hora, outros três no hospital. Houve 21 sobreviventes — entre os quais, Charlton. “Penso nisso todos os dias da minha vida”, disse em entrevista. “Não acho que tive sorte ou algo assim. Nunca pensei desse jeito. Como posso estar bem e todos os outros terem ido embora? Você se sente um pouco culpado.” Ele morreu em 21 de outubro, aos 86 anos.

    JUST FONTAINE
    Jogador de Futebol

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    JUST FONTAINE (Popperfoto/Getty Images)

    Não houvesse Pelé, Garrincha, Didi e cia., muito possivelmente o atacante francês Just Fontaine teria erguido a Copa do Mundo em 1958. A França perdeu a semifinal para o Brasil, por 5 a 2, com três gols do futuro Rei do Futebol, o franzino camisa 10 do Santos. Fontaine — habilidoso com as duas pernas e excelente cabeceador, apesar da estatura mediana, 1,74 metro — cravou seu nome nas enciclopédias do futebol ao marcar treze vezes em um único Mundial. A título de comparação: Messi também fez treze, mas ao longo de cinco Mundiais. Mbappé tem espetaculares doze em duas Copas. Quem chegou mais perto do francês nascido no Marrocos foi o alemão Gerd Müller, com dez tentos em 1970. Ele morreu em 1º de março, aos 89 anos.

    RICHARD “DICK” FOSBURY
    Atleta

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    RICHARD “DICK” FOSBURY (EPU/AFP)

    Foi um espanto para quem acompanhava as provas de atletismo no Estádio Olímpico da Cidade do México, em outubro de 1968. Na prova do salto em altura, Richard “Dick” Fosbury, galalau de 1,93 metro, correu, se aproximou do sarrafo e, em vez de tentar vencê-lo ao modo tradicional, de lado, como se as pernas fossem uma tesoura, virou de costas para a barra. Foi, segundo descrição do New York Times, “como Fred Astaire dançando no teto, em algum lugar entre uma façanha física e uma piada”. Ele superou 2,24 metros e conquistou o ouro. Morreu em 12 de março, aos 76 anos.

    JIM HINES
    Atleta

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    JIM HINES (EPU/AFP)

    O velocista americano Jim Hines foi o primeiro atleta a correr a celebrada distância de 100 metros abaixo dos 10 segundos, marca mítica — na Olimpíada de 1968, no ar rarefeito da Cidade do México, ele cravou 9,95 segundos. O espantoso recorde mundial durou extraordinários quinze anos, quando então o conterrâneo Calvin Smith chegou a 9,93 segundos. O atual recorde mundial é do jamaicano Usain Bolt, de 9,58 segundos, aparentemente inalcançável. Hines morreu em 3 de junho, aos 76 anos.

    FERNANDO BOTERO
    Pintor

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    FERNANDO BOTERO (Massimo Sestini/Mondadori/Getty Images)

    “Meu departamento de criação, mas que falta de imaginação”

    O pintor colombiano Fernando Botero era um Modigliani às avessas, cuja marca eram as figuras volumosas, rechonchudas, quase sempre em cenas coloridas. É compulsório, contudo, não se enganar — embora gostasse também de pintar o mundano, as cenas cotidianas e banais de seu país natal, ele sabia que atravessar as dores do mundo levaria sua obra a patamares ainda mais altos. “A arte deve produzir prazer, uma certa tendência ao aspecto positivo da vida”, disse. “Mas sempre pintei coisas dramáticas. Buscava a coerência e a estética, mas retratei a violência, a tortura e a Paixão de Cristo.” Morreu em 15 de setembro, aos 91 anos.

    Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873

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