Um documento para a história do Brasil
Morre em Belo Horizonte, aos 73 anos, César Ferraz, o jornalista que revelou em VEJA o discurso de posse que Tancredo Neves não pôde fazer, em 1985
“Com 38 dias e uma eternidade de atraso, Tancredo de Almeida Neves subiu a rampa do Palácio do Planalto às 17h45 de segunda-feira da semana passada. No dia 15 de março, esperara-se que sua figura miúda percorresse aquelas lajotas de mármore branco a caminho do poder, do restabelecimento da linhagem dos governantes civis e de uma nova República. Agora, via-se uma das cenas mais tristes e desconcertantes da história do Brasil”. Assim, na edição com a data de capa de 1.º de maio de 1985, VEJA abria a reportagem a respeito da morte de Tancredo, em 21 de abril.
A terrível travessia, que poderia ser o atalho para armadilhas na contramão do republicanismo, representou um momento de força das instituições – o vice-presidente José Sarney tomaria posse, em acordo preservado e defendido por uma das grandes lideranças do país, o deputado federal Ulysses Guimarães (1916-1992). Na morte, Tancredo forjara a unidade política que buscou em vida. Sem que pudesse exprimir em palavras a transição da ditadura para a democracia, internado durante mais de um mês no Instituto do Coração, em São Paulo, construíra um edifício sólido – edifício de defesa do estado de direito que só viria a ser ameaçado pela trama golpista comandada por Jair Bolsonaro, agora em julgamento no STF.
Havia, entre os políticos e jornalistas, depois da passagem de Tancredo, um segredo de polichinelo que todos almejavam: o discurso que ele faria na posse, e que evidentemente não pôde proferir. Obtê-lo seria um troféu. O feito coube ao chefe da sucursal de VEJA de Belo Horizonte, Lívio César Carvalho Ferraz, conhecido como César Ferraz, então com 33 anos. Calmo, de conversa a um só tempo educada e firme, afável, profundo conhecedor dos bastidores do poder em Minas Gerais, era muito respeitado pelo então governador, Hélio Garcia (1931-2016), um dos discípulos de Tancredo. Muitos outros repórteres circulavam ao redor de Garcia, é natural, com o mesmo objetivo. Mas foi César quem conseguiu o furo de reportagem. Um certo dia, em meados de julho daquele 1985, o mandatário capitulou: “O discurso tá comigo, menino”.
César, numa alta madrugada de fechamento, feliz como um menino, enviou as páginas datilografadas por fax para a redação da revista, em São Paulo. O editor, que esperava o documento na sala onde ficava a barulhenta máquina, ansioso, passou o olho na joia e telefonou para Belo Horizonte com a ironia que celebrava a conquista: “César, você vai ocupar muitas páginas da VEJA sem ter escrito uma linha.” O discurso ocuparia 8 páginas, com uma chamada lateral de capa: “Exclusivo: o discurso que Tancredo não pôde fazer no dia da sua posse”. O título principal anunciava: “Os 100 dias de Sarney”. No canto esquerdo, uma outra notícia: “Aids: o drama de Rock Hudson”.
Alguns dos trechos do que Tancredo escreveu – se não sua totalidade –, lidos hoje, representam o avesso da chicana contra a democracia, símbolo de respeito aos outros, da aceitação de derrotas e sobretudo da permanente luta contra a chaga brasileira, a desigualdade.
Do discurso de Tancredo:
“Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas a festa da conciliação nacional.”
“Há razões singelas para que haja mais amor à pátria no povo do que entre algumas de suas elites.”
“O exacerbado egoísmo das classes dirigentes as tem conduzido ao suicídio social.”
“Os que burlarem a confiança popular em meu governo podem estar certos de que tudo faremos para que restituam, centavo a centavo, o que tenham desviado, como atuará o Ministério Público no sentido de que paguem o seu crime na cadeia.”
“As mãos anônimas do povo indicaram-nos, com o protesto e a esperança, a trilha democrática.”
“Começamos hoje a viver a Nova República. Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos sem descanso para recuperar os anos perdidos na ilusão e no confronto estéril. Estou certo de que não nos faltará a benevolência de Deus. Entendamos a força sagrada desse momento, em que o povo retoma, solenemente, o seu próprio destino.”
César Ferraz, que seguiu à risca uma das mais celebradas definições de sua atividade, o jornalismo como rascunho da história, morreu em 28 de agosto, aos 73 anos, de complicações decorrentes do Alzheimer. Depois de VEJA, depois de iluminar a visão de mundo de Tancredo, em uma das mais bonitas revelações da revista, trabalharia no grupo Hoje em Dia, foi assessor de imprensa de diversos restaurantes mineiros e tratou de cuidar da casa que construiu em Nova Lima – sempre modesto, a modéstia como sinônimo de inteligência.
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