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Transposição do Rio São Francisco: o elefante branco do sertão

Obra tem rachaduras e mato dentro dos canais, a água não chega a municípios e a conta vai alcançar 12 bilhões de reais

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h05 - Publicado em 16 ago 2019, 06h45

Polêmica desde o seu lançamento, a transposição do Rio São Francisco coleciona alguns recordes — nada positivos, por sinal. A previsão atualizada de custo de 12 bilhões de reais a coloca como uma das obras mais caras da história do país. É também o único caso em que três presidentes inauguraram um mesmo trecho. Sim, só no Brasil. Em março de 2017, Michel Temer, na época à frente do Palácio do Planalto, protagonizou a cerimônia oficial em Monteiro, no Cariri paraibano, ponto final do Eixo Leste, estrutura de 217 quilômetros que perpassa Pernambuco e Paraíba. Nove dias depois, Lula (ainda solto) e Dilma Rousseff desembarcaram naquela cidade para a “inauguração popular” da menina dos olhos do PAC petista.

Após mais de dois anos, os políticos sumiram e não há motivos para festa. Os mesmos canais não recebem água e apresentam vários danos sérios. Nos dias 21 e 22 de julho, um perito do Ministério Público Federal da Paraíba vistoriou cerca de 40 quilômetros entre Sertânia (PE) e Monteiro. No relatório, ele aponta uma série de problemas. O revestimento de concreto tem fissuras, trincas e rachaduras que chegam a mais de 1,5 centímetro de espessura. Como faltam estruturas de drenagem, as chuvas levam a areia para o fundo, assoreando muitos trechos do curso d’água. Obras de drenagem estão com paredes quebradas, comprometidas por erosão, e algumas canaletas são quase invisíveis, cobertas por terra e pedregulhos. Há também mato dentro do canal.

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(Arte/VEJA)

O trabalho realizado de forma apressada gerou os problemas. Ex­-chefe da assessoria técnica ao governo para o projeto da transposição, Francisco Jácome Sarmento afirma que a execução da obra nos meses anteriores à inauguração focou somente fazer a água chegar, sem levar em conta serviços auxiliares como drenagem, proteção de taludes e instalação de comportas. “O que está lá é tão precário que bastou um curto período de meses de funcionamento para que as improvisações impusessem uma drástica redução na vazão transferida até anulá-la”, diz.

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Atual responsável pelo projeto, o Ministério do Desenvolvimento Regional, em nota enviada a VEJA, diz que o Eixo Leste ainda está em fase de “pré-operação” (só no Brasil: passados mais de dois anos da inauguração, o negócio encontra-se em “testes”). O bombeamento de água para 44 municípios da Paraíba está interrompido há cinco meses, em razão da necessidade de manutenção em equipamentos das estações em uma adutora em Pernambuco. Em 2018, quando o sistema funcionava, ele se mostrou fundamental para evitar uma crise de abastecimento em meio a um prolongado período de seca. Com os problemas atuais, a água não tem chegado aos açudes. “Se não fizerem nada, vai ser o caos”, alerta Eden Duarte, prefeito de Sumé (PB). Lideranças políticas da região organizam uma manifestação em Monteiro para o dia 1º de setembro com os motes “SOS Transposição” e “Grito do Nordeste”. Em municípios pernambucanos, o abastecimento também foi interrompido entre julho e agosto por falta de bombeamento.

Fora as dificuldades para levar água até onde o projeto prevê, a transposição do São Francisco não foge à regra de todas as grandes obras brasileiras: multiplicação de orçamento, superfaturamento, eternização de prazos, abandono por construtoras e decisões judiciais contrárias à execução. O custo total dos dois eixos da transposição, Norte e Leste, foi estimado em 2007 em cerca de 5 bilhões de reais. Neste ano, o Ministério do Desenvolvimento Regional calcula o valor final em 12 bilhões de reais. Ou seja, mais de duas vezes o orçamento inicial. No relatório mais recente da Controladoria-Geral da União sobre a gestão da obra, o órgão detectou, em apenas um contrato do Eixo Leste, de 841,8 milhões de reais, que a soma de superfaturamento e sobrepreço alcançou 35,7 milhões de reais. O cronograma original do PAC previa a conclusão do Eixo Norte em dezembro de 2012. Em 2016, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) chegou a suspender as obras, decisão revertida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em abril de 2019. Com 260 quilômetros de extensão, passando por Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, o Eixo Norte tem 97% das obras concluídas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, que espera começar o transporte de água ainda neste segundo semestre.

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INAUGURAÇÃO OFICIAL – Temer, em 10 de março de 2017: no Cariri paraibano (Beto Barata / PR/.)

Em meio aos problemas, o governo Jair Bolsonaro se move para conceder a efetiva operação do sistema à iniciativa privada — decretos das gestões Lula e Dilma atribuíam à estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) esse papel. Há duas semanas, o presidente assinou um novo decreto, qualificando o projeto como “obra estratégica” no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). Na mesma ordem, determinou que o Ministério de Minas e Energia elabore uma proposta de leilão de geração de energia solar para reduzir os custos dos sistemas de bombeamento — estimados pela CGU em até 800 milhões de reais anuais. O BNDES também estuda um modelo de parceria público-privada.

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TENTATIVA ‘FAKE’ –  Dilma, nove dias depois de Temer: obra com muitos pais (RODRIGO CARVALHO/AGENCIA DIARIO/.)

A ideia de levar a água do Velho Chico até as regiões do Nordeste atingidas por secas prolongadas é cogitada desde a época de dom Pedro II, no Segundo Reinado, no século XIX. Tirada do papel mais de 100 anos depois, ela não trouxe ainda as soluções esperadas. Pior: corre sério risco de virar o grande elefante branco do sertão.

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Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648

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