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“Trabalho para ajudar meu povo”, diz indígena da novela ‘Terra e Paixão’

De um povo ameaçado, Mapu Huni Kuin, 34 anos, virou músico, ativista e ator de novela

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h22 - Publicado em 5 ago 2023, 08h00
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  • Quando minha mãe ainda estava grávida de mim, meu avô, o então líder espiritual do povo Huni Kuin, identificou que eu seria o próximo líder espiritual da nossa comunidade. Nasci na reserva indígena de Kaxinawá Ashaninka do Rio Breu, na divisa do estado do Acre com o Peru. Meu avô começou meu treinamento quando completei 6 anos, me ensinando tudo o que ele sabia sobre as plantas ideais para cuidar de feridas, picadas de insetos e cobras. Ele também me ensinou sobre a sagrada medicina da ayahuasca e como me conectar com minha ancestralidade. Não tenho educação formal: meu aprendizado vem da floresta. Jamais imaginei que esses ensinamentos ajudariam a me tornar um ativista pelos direitos indígenas. Também sou cantor e ator. Gravei músicas com o DJ Alok e atualmente interpreto o personagem Raoni Guató na novela Terra e Paixão, da Globo. Recentemente, viajei até Cannes, na França, com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, onde encontrei com o ator Leonardo DiCaprio, para pedir apoio financeiro para um fundo que criamos em defesa da Floresta Amazônica.

    Até chegar a esse ponto, no entanto, enfrentei inúmeros desafios, desde aprender como viver fora da reserva indígena até receber ameaças de morte. Nosso povo sempre esteve vulnerável a ataques de seringueiros e madeireiros, além das tentativas de evangelização por missionários — e isso pode piorar caso o marco temporal das terras indígenas seja aprovado em Brasília. Em 2012, senti um chamado para deixar minha terra para estudar, e também para encontrar uma forma de ajudar meu povo. Em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do Acre, fui surpreendido com o individualismo do mundo ocidental. Achei que eu chegaria lá e teria casa, comida e amigos para me ajudar, mas o que me ofereceram de graça foi apenas álcool e cigarro. Vivi meses à míngua até conseguir trabalho como cantor e juntei dinheiro para me mudar para a capital, Rio Branco. De lá, fui para Brasília para participar de um acampamento indígena — onde conheci a antropóloga Araci Labiak, que me convidou para morar em Curitiba, onde trabalhei ministrando a sagrada medicina da ayahuasca. No Paraná, gravei meus primeiros rezos sagrados e postei os vídeos no YouTube. Foi a partir desses vídeos que o DJ Alok me conheceu e decidiu produzir minhas músicas, além de me convidar para gravar com ele seu novo trabalho, Futuro Ancestral. No fim do ano, apresentaremos essas músicas na ONU, em Nova York.

    Todo esse trabalho não teria sentido se eu não ajudasse meu povo, que é ameaçado constantemente em nossa reserva. Madeireiros do lado peruano estão desmatando a floresta. Do lado brasileiro, além de queimadas, religiosos estão convertendo índios e transformando caciques em pastores evangélicos, demonizando nossa cultura. Percebi também que a terra demarcada não é nossa. Ela é da União, e o governo pode dispor dela como quiser no futuro. Por isso, decidi entrar no sistema: com o dinheiro que ganhei, comprei 11 hectares nos arredores de Rio Branco, onde construí o Centro Huwã Karu Yuxibu. Hoje, o local abriga 42 famílias, cerca de 210 pessoas — que, sem amparo do governo, corriam risco nas cidades grandes, inclusive sendo arregimentadas para o crime. Um político chegou a me pedir “ajuda” para levar as mulheres da nossa comunidade para se prostituírem na Bolívia. Isso foi uma facada no meu coração. No centro, preservamos nossa cultura e identidade, inclusive a culinária tradicional e os saberes ancestrais da floresta. Quero trazer essa consciência também para os meus onze filhos (nove de sangue e dois adotados). Meu objetivo é que as pessoas vivam em harmonia com a natureza.

    Mapu Huni Kuin em depoimento dado a Felipe Branco Cruz

    Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853

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